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Tesouros da Crimeia em terra de ninguém

Ucrânia e a península anexada à Rússia temem perder obras expostas em Amsterdã O Governo holandês estuda a quem devolver as peças de citas, hunos e godos

Isabel Ferrer
Uma das peças expostas em Amsterdã, agora objeto de litígio.
Uma das peças expostas em Amsterdã, agora objeto de litígio.

Crimeia: ouro e segredos do mar Negro, a exposição aberta no museu arqueológico Allard Pierson, da Universidade de Amsterdã, bem que poderia levar o subtítulo provisório de Arte no exílio. As obras procedem de cinco museus ucranianos, quatro deles localizados na Crimeia, e a anexação da península à Rússia complicou sua devolução. Embora trata-se de uma cessão normal entre centros culturais, a universidade e o Governo holandês estudam agora “uma forma da devolver a seus legítimos donos”. A pergunta é aonde?, porque Crimeia e Ucrânia reclamam as peças com a mesma intensidade.

“Não posso precisar o procedimento legal para a devolução, porque pode ter várias formas de ser feita. Mikhail Shvydkoi, representante do presidente Putin para a cooperação cultural internacional

A comunidade internacional não reconheceu a anexação da Crimeia, e o ouro de Cítia levado a Holanda, procedente da antiga região euroasiática que abarcava o sul da Rússia e Ucrânia, ao norte do Cáucaso, e o Baixo Danúbio, é mais precioso que nunca. Na Ucrânia temem que vá parar diretamente na magnífica sala russa do Museu Hermitage de São Petersburgo, que conta assim mesmo com abundantes restos de tumbas do povo cita. Seu diretor, Mikhail Piotrovsky, assegurou à rádio nacional que o conjunto deve permanecer na península. Depois disse que “desde o ponto de vista jurídico, as coisas não estão tão claras”, em uma Ucrânia partida desde 18 de março. Uma frase ambígua que o Hermitage logo esclareceu. Em uma nota respondida à agência russa Itar-Tass, explica-se: “Nem nossa sala, nem as demais salas russas, reclamarão as coleções da Crimeia”. O resto do comunicado esclarecedor enredou novamente as coisas: “A ética define que os empréstimos de arte regressem ao museu que os guardou durante séculos. As leis, por outro lado, podem indicar como dono o museu do país do território que as cedeu”.

Na sexta-feira, Mikhail Shvydkoi, representante do presidente Putin para a cooperação cultural internacional, quis encerrar a questão com uma advertência. “Não posso precisar o procedimento legal para a devolução, porque pode ter várias formas de ser feita. Mas o conjunto faz parte do patrimônio cultural da região”, afirmou, através da agência RiaNovosti.

Pouco antes, o Ministério ucraniano de Cultura assinalava que aguardava o precioso carregamento em Kiev, a capital. As razões para isso seriam que seu departamento negociou o empréstimo para a exposição holandesa, montada antes em Bonn (Alemanha). Andrei Malgin, diretor do Museu Tauris (Simferopol, Crimeia), um dos afetados, pediu o mesmo, mas para sua sala. “Pode que tenha gente em Kiev que as queira, mas esperamos aqui as obras quando terminem a exposição na Holanda, em 18 de agosto”. Em plena confusão, o Museu de Tesouros Artísticos da Ucrânia desmentiu que pensasse entregar o de Cítia em troca de um empréstimo do Fundo Monetário Internacional. “Não é verdadeiro”, comentaram fontes do museu.

Não temos intenção de trocar com nada, mas é um tema complexo e estudaremos a fundo Porta-voz do Museu Allard Pierson de Amsterdã

A novelo político, cada vez mais grosso, pegou de surpresa o museu holandês. Condenado a um exercício que ameaça invocar o direito internacional, seus porta-vozes declaram: “Não temos intenção de trocar com nada, mas é um tema complexo e estudaremos a fundo”. Para os juristas da Universidade de Amsterdã, e seus colegas de Relações Exteriores, é uma autêntica batata quente da diplomacia cultural, e não podem soltá-la sem conhecer seu destino. Desde a própria Universidade de Amsterdã admitem que a situação é muito complicada: “Estamos em contato permanente com o museu, com Kiev e com Moscou”. O centro holandês tem uma das coleções arqueológicas mais importantes do mundo, em especial sobre Egito, Grécia antiga, o Império Romano, os etruscos e Oriente Médio.

A mostra, por enquanto, segue seu curso sob uma luz diferente. Com a perspectiva da anexação da Crimeia à Rússia, pode ser lida quase em termos políticos. Dos quase mil objetos à vista, uns 300 chegaram do Museu Tauris. O Museu de História e Arqueologia de Kerch, e o de Bachisarai, também colaboram. Na Crimeia, todos expõem jarras, cerâmica, armaduras, material etnográfico (como quadros e bordados) e litografias.

Quando o catálogo indica “a identidade política e cultural da Crimeia (…) uma península palco de sucessivos dramas históricos”. E quando fala de “Crimeia e o mar Negro, que estiveram e continuam estando na encruzilhada entre Europa e Ásia”, acaba tornando difícil evadir da profundidade política atual. No Allard Pierson fizeram um grande esforço para “revisar a trajetória dos citas, hunos e godos, chamados erroneamente de bárbaros durante séculos”. Umas caixas de laca chinesa, que chegaram à Crimeia através da Rota da Seda no tempo dos Romanos (século I a.C.), evocam hoje caminhos mais difíceis de transitar.

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