_
_
_
_

O ‘boom’ e a blindagem da literatura

Até outubro de 1967 quase não se teve notícia da sua existência nem da sua obra nos jornais e na imprensa cultural da Espanha

Jordi Gracia
Três grandes da literatura latino-americana e suas esposas, fotografados a princípios dos anos setenta. À esquerda, Mario Vargas Llosa e
 sua mulher, Patricia Llosa; no centro, José Donoso y Pilar Serrano. À direita, Mercedes Barcha y García Márquez
Três grandes da literatura latino-americana e suas esposas, fotografados a princípios dos anos setenta. À esquerda, Mario Vargas Llosa e sua mulher, Patricia Llosa; no centro, José Donoso y Pilar Serrano. À direita, Mercedes Barcha y García MárquezCORBIS

Chegou por último, embora isso hoje pareça mentira. Até o final de 1967, praticamente não havia notícia da sua existência e da sua obra na imprensa espanhola, fossem nos jornais ou nos veículos culturais. Mas não pelo que todos maliciamos, ou seja, porque os jornais e as vitrines das livrarias estão colonizados por franquistas ignaros – tipo Pombo Angulo –, porque isso é só uma parte da verdade. Desde 1960, começa a circular aqui [na Espanha] um bom punhado de novos nomes para o leitor espanhol, entre os quais não está Gabriel García Márquez. Mas estão, e com espaços destacados em jornais e inclusive com dossiês e edições monográficas em revistas, outros nomes com ressonância crescente: Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato, Adolfo Bioy Casares, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Miguel Angel Asturias (e a bomba que foi a notícia do seu Prêmio Nobel no final de 1968), Guillermo Cabrera Infante e sobretudo, e à frente de todos, Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa. Estão sendo descobertos porque desde 1960 alguns espanhóis os publicam na imprensa, na Destino, no Informaciones, no Pueblo, no La Vanguardia e na El Ciervo, e além do mais lhes dão os prêmios mais modernos e provocadores, mais in, como o Biblioteca Breve. É conferido desde 1961 aos raros, raríssimos, que escrevem com uma língua molhada, palavrosa, oral e culta, como faz Vargas Llosa em A Cidade e os Cães, como faz com descaramento e sem decoro Cabrera Infante em Três Tristes Tigres, ou como o faz mais esticado e engomado deles, Carlos Fuentes.

Todos, ou quase todos, menos García Márquez, que não está por nenhum lado. É o mais tardio, mas também o mais explosivo, que passa de não estar a estar absolutamente e colonizar de repente e com todas as armas a fantasia dos leitores, inclusive dos mais senhorialmente displicentes, como Juan Benet, que também cai rendido a ele a partir desse mesmo 1968. É como a fagulha, ou a mecha, ou o gatilho que confirma a plenitude dos novos nomes americanos, porque todos eles já estão lá e, sobretudo, eles sabem desse colombiano pacato e ensimesmado, que é o autor O Enterro do Diabo: A Revoada, sabem que existe Macondo, sabem que ele publicou na imprensa o deslumbrante Relato de um Náufrago, e sobretudo sabem que já é o autor de Ninguém Escreve ao Coronel. Só que aqui quase ninguém sabe disso até aquele outubro de 1967, quando Joaquín Marco, Pere Gimferrer e Rafael Conte – exatamente no mesmo dia, 14 de outubro de 1967, sendo dois deles na Destino e o outro no Informaciones –consagram o portento que menos de um ano depois teria vendido a fabulosa cifra de 80.000 e que virou febre nas livrarias da Itália.

E são eles mesmos que saem em campanha por García Márquez, como faz Vargas Llosa, que explica imediatamente, em 1968, que com o colombiano ressuscita a literatura de aventuras e a pura narração de As Mil e Uma Noites, e talvez por isso, inclusive, quando os jornalistas lhe perguntam, vem o título à boca de uma cantora famosa e metida a esquerdista da época, Massiel: o que está lendo encantada é Mil Anos de Solidão. E é Carlos Fuentes, na imprensa também, recém-premiado com o Biblioteca Breve, quem esclarece coisas e observa que essa nova literatura não é só argentina, como poderia parecer diante de Borges, Bioy Casares, Sábato e Cortázar, mas que é também mexicana (começando por ele e pelo mudo Juan Rulfo), peruana, porque há Vargas Llosa (e há a genial melancolia de Julio Ramón Ribeyro), e cubana, porque existem Lezama Lima e Alejo Carpentier.

Isso significa que García Márquez é chamado de Gabo – inclusive por aqueles que nunca abriram um livro seu – porque é menos um escritor do que um talismã, porque seu nome se torna ícone desde o primeiro instante e sem a menor participação ativa do próprio García Márquez, e com um pouco da dos seus amigos. Contra as perturbadas teorias conspiratórias de Donoso ou de quem quer que seja, García Márquez ocupa de repente, e sem volta, a ponta de uma pirâmide imaginária de qualidade e popularidade, porque agrada a todos, e agrada de forma incontinente, e não deixará mais de agradar, faça o que faça, dramalhões sentimentais, falsas crônicas em forma de grande romance – como a Crônica de Uma Morte Anunciada –, contos fantásticos com alguma geografia catalã – Doze Contos Peregrinos –, ou inclusive gêneros tão imaginários e fantasiosos como memórias que não são memórias, e sim um esplêndido relato de formação (e por isso se intitulam Viver Para Contar, contar a farra, a festa, a vida), como é jornalismo enxertado de romance um instrumento como Notícia de um Sequestro, gravemente perigoso em mãos mais desastradas ou sectárias. A literatura pura blinda García Márquez contra todo o resto, inclusive sua fraqueza pelo poder, inclusive seu progressivo autismo social, inclusive sua alta taxa de vaidade vulnerável.

 Jordi Gracia é catedrático de literatura espanhola na Universidad de Barcelona

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_