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A democracia praiana do Rio está trincada

Uma das perguntas mais recorrentes no primeiro contato entre cariocas é: “Qual é sua praia?”. O imaginário popular diz que a resposta habitualmente revela o perfil básico do interlocutor

Pessoas observam o pôr do sol na pedra do Arpoador, no Rio de Janeiro.
Pessoas observam o pôr do sol na pedra do Arpoador, no Rio de Janeiro.Antonio Lacerda (EFE)

Que a praia no Rio de Janeiro é um ecossistema social sui generis regido por suas próprias regras não é nenhuma novidade, e qualquer carioca da gema certificará o fenômeno. Entretanto, existem discrepâncias em torno da imagem às vezes inexata da praia mais turística do Brasil como lugar “eminentemente democrático”, onde gente de diferentes classes sociais, culturas, credos, raças e tendências sexuais se misturam em harmonia absoluta, sem o menor traço de discriminação ou conflito. Quando chega o verão, uma das características mais chamativas das praias cariocas é sua propensão a agrupar tribos ou grupos sociais por setores geográficos. No Rio, para simplificar as coisas, as áreas praianas estão sinalizadas pelos chamados postos, que na gíria carioca são simplesmente as torres de vigilância de onde os salva-vidas observam o panorama marinho. O espaço entre o Leme e o Leblon, incluindo as internacionalmente conhecidas praias de Copacabana e Ipanema, está dividido por doze torres, distanciadas entre si por 800 metros. Uma das perguntas mais recorrentes que costumam surgir no primeiro contato entre cariocas é: “Em que posto você vai?”, ou “Qual é sua praia?”. O imaginário popular diz que a resposta habitualmente revela as chaves e o perfil básico do interlocutor.

Percorrer as praias de Ipanema e Leblon é um exercício revelador do que acontece no espaço mais turístico e frequentado do Rio de Janeiro. A subdivisão é bastante clara: no posto 7, localizado na praia do Arpoador, abundam os surfistas e as famílias de baixa renda provenientes das vizinhas favelas do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Também costumam desembarcar nesta praia os habitantes dos subúrbios da deprimida Zona Norte do Rio, a quem as classes mais ricas chamam depreciativamente de “farofeiros”, por seu hábito de levar comida à praia.

“Os cariocas adoram dizer que a praia é um espaço de efetiva democracia, mas, quando acontecem coisas como o fenômeno dos arrastões e a reação que eles provocam na sociedade e nas autoridades, que decidiram começar a fiscalizar os ônibus que chegam dos bairros da Zona Norte, você percebe que não há nada mais distante da realidade”, denuncia a antropóloga Julia O’Donnell, autora do livro A Invenção de Copacabana, uma pesquisa histórica sobre o fenômeno praiano no Rio.

“Os primeiros frequentadores da praia, no século passado, foram as elites sociais, e a praia da Copacabana foi o espaço de exercício dessa modernidade aristocrática. No final dos anos vinte, ela começou a ser frequentada por outros grupos, e essa aristocracia começou a protestar. Resistiam a que o diplomata tomasse sol ao lado do cozinheiro. A história da praia no Rio começa com uma discriminação muito profunda, que finca suas raízes na divisão espacial da cidade. Foi a primeira vez que se começou a distinguir entre a Zona Sul como área rica e a Zona Norte como área mais popular”, explica a antropóloga.

A 800 metros do posto 7 se localiza o trecho onde o coletivo gay se fortaleceu. Ele é facilmente identificável pelas bandeiras do arco-íris que são visíveis à distância e decoram os quiosques de bebidas. Diariamente, centenas de homossexuais de múltiplas nacionalidades se agrupam aqui para conversar e se enturmar. “Ao estar rodeado de gente que também é gay me sinto com mais liberdade que em outras zonas. As pessoas às vezes não são tão liberais quanto parecem. Estou há 12 anos vivendo no Rio e vi avanços, mas continuam existindo muitos preconceitos”, comenta o argentino Pablo Aguirre.

A poucos metros do posto 9 fica o quiosque de comida e bebida do uruguaio Milton González, uma autêntica lenda na praia de Ipanema. Há mais de 30 anos ele vê desfilar a fina flor do Rio por essa área tradicionalmente considerada como um ponto de encontro de gente jovem e moderna. “O público que temos aqui é variado, do médico ao artista”, diz Milton, conhecido pelos deliciosos sanduíches de calabresa que fornece nesse trecho considerado como um dos focos das novas tendências no Rio.

“O posto 9 é um lugar de referência. Meus amigos sempre se reúnem aqui para jogar altinho [jogo coletivo que consiste em passar a bola com os pés sem deixá-la cair na areia], dar um mergulho ou fumar um baseado”, admite com evidente sinceridade Gabriel, um jovem rasta de 25 anos. O estudante de teatro Leon Benite, de 22 anos, vai além: “Uma volta pela praia às vezes resolve um trabalho, traz uma amizade ou convida a fazer esporte. Você resolve tudo, porque tudo acontece aqui”.

No posto 11, já no sofisticado bairro do Leblon, onde as imobiliárias identificam o metro quadrado mais caro do Brasil, a fotografia social é radicalmente diferente. As famílias de alto poder aquisitivo reinam na areia, e há pouco espaço para a farra desenfreada que se vive em certas áreas de Ipanema. “Este é o trecho de praia menos divertido do Rio. Aqui vêm muitos poderosos que não permitem nada que saia das regras”, conta Reginaldo, um vendedor de mate gelado que percorre diariamente de ponta a ponta as praias de Ipanema e Leblon.

As adeptas do topless também lançaram recentemente uma batalha para ganhar algum espaço na areia. A polícia do Rio de Janeiro proíbe a exposição dos seios com base no artigo 233 do Código Penal, que pune o “ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”. Nos últimos anos, ocorreram numerosos casos em que mulheres acabaram na delegacia depois de se atreverem a mostrar os seios publicamente nas praias cariocas, cidade que deu ao resto do mundo a moda do fio dental. Ana Paula Nogueira, recentemente batizada pela imprensa local como a musa carioca do topless, anunciou que vai solicitar ao prefeito Eduardo Paes que despenalize a prática nudista em algum trecho de Ipanema ou Copacabana.

“Da mesma forma como em outras cidades as pessoas vão a clubes para encontrar seus amigos, aqui vamos à praia”, diz a jornalista Marcia Disitzer, autora do livro Um Mergulho no Rio, um ensaio sobre os hábitos e tendências nas praias cariocas durante as últimas décadas.

O que parece de fato inalterável neste verão ao longo das praias da Zona Sul do Rio é a forte presença policial para evitar que os roubos em série acabem esmaecendo novamente a imagem de uma cidade que quer se mostrar para o resto do mundo como um dos destinos turísticos mais atrativos e seguros.

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