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“Racismo acontece de uma forma não dita. Aí reside a sordidez”. A dor do preconceito em primeira pessoa

A convite do EL PAÍS, três brasileiros negros relatam dias de seu cotidiano neste mês de novembro e mostram como o preconceito atravessa até os afazeres mais comuns. “Dois brancos me abordaram e perguntaram onde comprar maconha. Acho que queriam saber se eu tinha para vender”

Kaylan Werneck Ramos da Silva, 19, Evie Barreto Santiago, 46 e Gustavo Domingues de Oliveira, 27
Kaylan Werneck Ramos da Silva, 19, Evie Barreto Santiago, 46 e Gustavo Domingues de Oliveira, 27
Gustavo Domingues de Oliveira Evie Barreto Santiago Kaylan Werneck Ramos da Silva
Salvador / São Paulo / Rio de Janeiro -

O fosso que separa brancos de pretos e pardos no Brasil pode ser medido por números. É neste segundo lado, composto por 55,8% dos brasileiros, que estão os menores salários, a maior quantidade de desempregados, a maior taxa de analfabetismo do país, e onde crianças morrem mais por causas que poderiam ser evitadas se tivessem tido acesso a um sistema de saúde adequado. Mas por trás das estatísticas está o dia a dia, o cotidiano de milhões de brasileiros que enfrentam e refletem —às vezes até sem querer— sobre o racismo nas ruas ao ir à padaria, ao trabalho, ao escolher a roupa para vestir ou traçar os caminhos por onde andar. O EL PAÍS convidou três deles, de diferentes faixas etárias e regiões do Brasil, para relatar alguns de seus dias neste novembro, mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra.

O estudante Kaylan Werneck Ramos da Silva, no Rio de Janeiro.
O estudante Kaylan Werneck Ramos da Silva, no Rio de Janeiro.Felipe Fittipaldi

Sou Kaylan Werneck Ramos da Silva, tenho 19 anos e moro em Rubens Paiva, uma espécie de sub-bairro da Pavuna [zona Norte do Rio], com meu pai, minha madrasta e uma irmã de consideração, filha dela. Meu pai dá aula de teatro e minha madrasta trabalha na Rede de Agências para a Juventude. Não moro com minha mãe desde muito novo porque ela se mudou para a Itália. Falamos às vezes, mas não sempre. É mais por telefone ou quando ela vem, uma vez por ano. Também tenho cinco irmãos de sangue, mas nenhum mora comigo. Sempre me considerei negro. Sempre foi muito claro para mim desde muito novo e na adolescência isso foi se reafirmando. Ser negro é ter que lutar e resistir. Como foram meus dias:

[14/11, quinta-feira]

Acordei e fui levar minha avó (que eu chamo de mãe) para o hospital de Bonsucesso, porque ela ia operar de uma hérnia. Ela mora em Paciência [zona oeste do Rio], então peguei o trem no ramal Santa Cruz e descemos no Maracanã. Depois pegamos outro, no sentido Gramacho, descemos em Bonsucesso e fomos andando até o hospital. Fiquei até umas 14h30 lá, mas ela acabou voltando para casa porque disseram que não iam mais operar naquele dia.

Terminei o ensino médio aos 17 anos. Em 2018 fiquei meio parado, vendo o que fazer. Mas consegui uma vaga na Spectaculu, uma escola de tecnologia e arte. Estou fazendo um curso de Iluminação Cênica. É de segunda a sexta e começa às 14h, mas nesta quinta acabei chegando por volta de 15h15. Foi tranquilo porque acaba agora em dezembro e estamos fazendo o trabalho final. É um videoclipe de cinco minutos da Tia Surica [sambista da velha-guarda da Portela]. Ficamos até 17h30, a hora que sempre acaba.

Depois disso eu e um pessoal tomamos banho, nos arrumamos e seguimos às 18h30 para o Youtube Space, que fica perto do Museu do Amanhã [zona portuária do Rio]. Faço um curso de vídeo roteiro lá, mas nesta quinta estivemos num show da rapper Tássia Reis e da banda Youn, formada por meninos de Duque de Caxias. Fomos mega arrumados. Todos os cantores eram negros, e a gente pensando "caraca, estamos ocupando esse espaço que é só de elite!” Então fomos arrumados para prestigiar, são nossas irmãs que estavam ali. Saímos de lá e decidimos ir para a Lapa. E sempre que saímos, vamos para o centro dar um rolé na Lapa e tal, a gente também coloca nossa melhor roupa. Sempre buscamos estar de calça, tênis, carteira de identidade... Quanto mais arrumado, mais fácil de não ser confundido com um assaltante. Tem que saber o lugar, o tipo de ambiente onde vamos para nos vestir no mesmo patamar. Até para mostrar que a gente pode ocupar este mesmo espaço.

Éramos seis pessoas. Seguimos pela Gamboa, até o Campo de Santana. Podíamos pegar duas ruas. Uma que vai por cima e já sai nos Arcos da Lapa ou ir pela Rua do Lavradio. E uma amiga falou: “Pô, mano, vamos aqui pela Lavradio porque pela outra parte acontece umas duras sinistras da polícia”. Pelo fato de ser muito deserto e estarmos em grupo, muito jovens e negros ali à noite... Mas quando chegamos até lá, os policiais estavam dando uma dura num rapaz, que estava sendo levado preso. A gente olhou e falou: “Caraca, se ele não estivesse nessa abordagem, poderia ser a gente”.

Eu estava andando um pouco mais à frente, escutando música com um fone só e vieram dois caras brancos. Estavam arrumados, vi que tinham condição. Eles me abordaram e falaram: “Boa noite, pode me dizer onde comprar maconha por aqui?”. Eu respondi: “Pô, não sei, não fumo, não”. Eles olharam surpresos. “Não?!”. Ainda fizeram um puuuuff com a boca, de deboche e com cara de decepção. E isso é algo que te dá uma desmotivada. Então não posso estar neste ambiente, andando por aqui, sem que me perguntem onde se vende maconha?

Acho que ele também queria saber se eu tinha para vender. O Ton, meu amigo, falou: "É foda, a gente é preto e os caras acham que a gente tem que saber. Por ali passam milhão de pessoas, por que chegaram só em nós?”. Depois fomos embora pra casa. Para ir todo mundo seguro, a gente sempre vai embora junto. Vai deixando cada um num ponto de ônibus e esperamos ele chegar, para que ninguém vá sozinho. Mas a maioria pega o ônibus ali na Central do Brasil, e os últimos costumam ir juntos para a casa e até dormir em um mesmo lugar. Eu mesmo desta vez fui com dois amigos para o Complexo do Lins, para a casa de um deles.

[15/11, sexta-feira]

Acordei na casa de meu amigo e peguei o trem no Engenho Novo. Um policial entrou e ficou olhando para mim e meu amigo de longe. Cheguei em casa e fiquei por lá.

Não tem tanto tempo eu estava no trem, na estação Triagem, e os policiais entraram e deram uma dura sinistra em mim e outros jovens. Enquanto revistavam, um deles falou para um de nós: “Fica calmo! Tá nervoso por quê? Vai tomar um porradão!”. Estavam ameaçando, pedindo droga... E nos fizeram descer na estação Maracanã. Um deles me pediu para abrir a mochila, num tom muito alto, perguntando se eu estava com alguma coisa. Tudo de uma forma muito bruta. Assim que viram que eu não tinha nada, me liberaram. Mas outros jovens ainda ficaram lá. É algo que acontece diariamente no trem, vários amigos já passaram por esse tipo de situação.

Em Rubens Paiva, onde moro, é tranquilo. Não é uma favela, mas sofremos pela violência porque moramos do lado do Complexo da Pedreira, de Costa Barros... Nesses meses agora teve uma guerra [entre facções] da Pedreira e do Chapadão. O pessoal que mora em Rubens Paiva foi bastante atingido. Foi cena de guerra, a ponto de o metrô fechar, com muitos tiroteios e jovens morrendo... No grupo de WhatsApp era um avisando ao outro como é que estava. Em dois dias teve toque de recolher às 15h, avisaram que não era para ninguém estar na rua porque podiam invadir [a favela]. Como faço curso neste horário e chego umas 19h ou 20h, não podia ir para casa. Então me abrigava na casa de amigos ou meu pai me buscava no metrô, porque a qualquer momento rolava tiroteio de novo. A polícia ficava na parte de baixo.

Quanto mais arrumado, mais fácil de não ser confundido com um assaltante.

Também rola assalto ali na rua onde moro. E, quando tem policial lá, existe o risco de tomar uma dura, principalmente à noite. E o ruim é que é um lugar deserto depois das 20h ou 21h... Quem vai pra casa já fica com receio. Já tive que ligar para o meu pai e perguntar se está de boa, se havia alguma operação... Já tomei muita dura, nem conto quantas. É constrangedor, sabe? É uma parada que acontece e que eu prefiro sempre esquecer. Foram muitas vezes, mas sempre procuro tirar isso da minha vida. Quando acontece, tu sempre se sente mal, tu repensa tudo. “Caraca, o que eu fiz para passar por essa situação?!” Você começa a se questionar sobre você mesmo. Na maioria das vezes eles dizem que você está com atitude suspeita, né? Já chegam pedindo droga, é a primeira coisa que fazem. Dizem que se tiver alguma que é para entregar e evitar esculacho. E que se eles acharem vai ser pior. Nunca fui encontrado com nada porque nunca tive nada, não uso nada. E é aquilo... Mão na parede e para o alto, eles fazem as mesmas perguntas várias vezes, às vezes alto, para ver se te pegam na contradição. Aí revistam sua mochila, seu bolso... E é claro que tem a ver com a minha cor. Todo jovem preto já tomou uma dura. Conversando com amigos meus brancos, a maioria deles nunca tomou dura. Por que eu que sou preto tomo dura e eles, que estão no mesmo espaço que eu e frequentam os mesmos lugares, nunca tomaram?

[16/11, sábado]

Aos sábados tenho um curso de 9h da manhã às 12h na Agência de Redes para Juventude, em Santa Cruz. Saio por volta de 8h. Peguei a van e desci no shopping Santa Cruz, onde encontrei um amigo. Fomos a pé para o curso. Todo o trajeto foi tranquilo. Mais tarde ainda estive na casa do meu amigo e na casa de minha namorada, que mora bem perto de mim. É um caminho curto, fui de bicicleta. Tinha bastante movimento na rua e as pessoas me conhecem, então foi bem tranquilo.

Lá na Redes para Juventude fomos divididos em grupos de ativistas, líderes comunitários, jovens empreendedores da favela... E cada um teve que criar um projeto. E nossa ideia de tratar sobre saúde mental com os jovens da comunidade é para dar uma ajuda para eles, porque... Ah, a gente sofre, né, mano! No dia a dia sofre dura policial, sofre preconceito, sofre racismo... Então a gente sai com nosso psicológico já abalado. Falo pela minha própria experiência e de outras pessoas do grupo que também passam por esse tipo de situação. No grupo tem pessoas de Santa Cruz, Pavuna, Cidade de Deus... Estamos bem espalhados, mas passamos por isso todos os dias. E a Laís, uma menina do nosso grupo, teve a ideia de falar sobre evasão escolar, porque ela é uma menina negra que está fazendo faculdade. E o Ensino Médio foi muito difícil para ela.

Já tomei muita dura da polícia, nem conto quantas. Quando acontece, tu repensa tudo: “Caraca, o que eu fiz para passar por essa situação?!”

O índice de jovens saindo da escola, sem nem completar o ensino médio, é muito alto. Isso tem a ver com a saúde mental, com as coisas que sofrem dentro e fora de casa... E tem a ver com o que acontece com o jovem, negro da periferia e da favela. Não estamos 100% preparados para passar por esses conflitos todos os dias. Isso acaba adoecendo a gente, e a gente acaba se perdendo, perdendo o foco na escola, no curso... No nosso grupo tem uma menina que é psicóloga e estamos buscando parcerias com outros psicólogos para que esses jovens tenham um acompanhamento. Não queremos despertar essa reflexão nesses jovens e não poder ajudá-los depois.

Penso em fazer faculdade. Estou em dúvida entre Arquitetura e Comunicação. Quero fazer o ENEM, mas fiquei meio frustrado por não ter conseguido a isenção. Outras pessoas do meu meio que tinham condições de arcar com a inscrição conseguiram. Eu realmente não posso pagar.

Os dados por trás do relato



Evie Barreto Santiago, 46 anos, no corredor de seu apartamento em São Paulo.
Evie Barreto Santiago, 46 anos, no corredor de seu apartamento em São Paulo.Camila Svenson


Meu nome é Evie Barreto Santiago, tenho 46 anos e sou gerente sênior jurídico e compliance de uma empresa farmacêutica. Nasci em Salvador, mas moro em São Paulo desde 1997. Meus pais são baianos e vivos. Ele é advogado e farmacêutico e ela, enfermeira. Tenho três irmãos: uma psicóloga, um advogado e capitão da PM e uma irmã advogada. Moro no Jardim Paulista [bairro de classe média alta] com meu filho. Descobri-me como negra durante a época de escola. Eu e minha irmã íamos ou voltávamos de carona com a mãe de uma colega. Eu devia ter uns 12/13 anos, saindo da infância e iniciando a adolescência. Sentia uma certa indisposição dessa mãe em relação à gente. Era algo estranho, não dito, mas se expressava pela forma ríspida como ela nos tratava. Hoje eu leio como um racismo velado, mas não posso afirmar com certeza, pois, na verdade, o racismo na maioria das vezes acontece dessa forma não dita. E é aí que mora a sordidez. Assim foram meus dias:

[5/11, terça-feira]

Quando soube do teor desta reportagem, percebi que a minha maior contribuição seria falar sobre o sentimento de passar a vida em um ambiente ocupado por pessoas brancas. Poderia parafrasear aquele trecho do filme “vejo pessoas brancas por todos os lados”. Isso não seria nada demais se as pessoas negras que representam mais da metade da população estivessem presentes na mesma proporção.

Na sequência do telefonema que recebi da repórter, me dirigi ao clube para fazer pilates. O meu clube é frequentado pela classe média paulistana e foi marcado pelo elitismo tradicionalmente. Portanto, posso contar os sócios negros e negras em uma mão. Noto a perplexidade das pessoas quando me veem ali, sabe? Geralmente quando estou no carro, que é um carro bom, da empresa, as pessoas chegam a olhar duas vezes... No começo me incomodava muito.

Às terças, levo o meu filho, que tem 10 anos, para a escola. Ele estuda em um colégio de classe média alta, no qual há poucas crianças negras. Mas já é número suficiente para eu me sentir mais confortável em comparação à escola antiga. A ausência de pessoas negras no ambiente escolar de classe média é um sintoma grave e as consequências são mais graves ainda. Isso se reflete na ausência de pessoas negras nos postos decisórios da nossa sociedade. Claro que a solução seria o fomento da educação pública. A solução pra esse e outros problemas estruturais. Passo o dia no trabalho e reflito que a ausência de pessoas negras no mundo corporativo é fruto principalmente dessa deficiência na educação pública. Mas enquanto isso não ocorre, apoio toda e qualquer iniciativa de políticas afirmativas que contemplem a diversidade com foco no aumento da representatividade negra. Para isso, é preciso alterar a forma de seleção, focando nas competências pessoais, em detrimento de currículo formal, já que sabemos que exigir currículo é perpetuar a exclusão.

No clube posso contar os sócios negros e negras em uma mão. Noto a perplexidade das pessoas quando me veem ali

No almoço, vou a um restaurante no shopping JK com algumas amigas. Nem vou me alongar, homens brancos executivos por todos os lados, pessoas negras servindo. Se trocassem o figurino para a época colonial, a sensação seria a de voltar no tempo.

Depois do trabalho faço dança afro na Vila Madalena. É o lugar no qual eu me sinto mais bem representada. Apesar do bairro ser um reduto de classe média, a aula é de uma diversidade de gênero e raça imensa. É o ponto alto do meu dia.

[6/11, quarta-feira]

Vou ao trabalho pensando sobre em que medida há melhora do racismo no país. Concluo que, sim, há melhora. Melhora que vem da luta dos negros e negras que passaram a se mobilizar para que os danos da escravização sejam reconhecidos e reparados. Ações afirmativas na área da educação, principalmente, vêm contribuindo com avanços significativos na busca de direitos sociais usurpados pela estrutura racista da sociedade. No mundo corporativo já vemos iniciativas que buscam diversidade racial. A internet deu visibilidade a quem nunca tinha voz na mídia tradicional. Então, a nossa voz passou a ser ouvida por negros e negras ávidos por conhecimento sobre o assunto. Hoje já temos personalidades negras, gente de muita competência discutindo, esclarecendo, debatendo sobre o racismo, com muita propriedade. Fora a literatura produzida por mulheres negras incríveis. É dessa fonte que eu bebo para entender melhor o meu papel, como posso contribuir para a luta antirracista. Enfim, vejo um cenário de melhora, mas um caminho a percorrer. Fora que atos de resistência e a busca por um espaço podem gerar uma reação do outro lado. Isso é perceptível também, mas vejo como um sinal de que a luta vem surtindo efeitos.

[7/11, quinta-feira]

Penso nos momentos em que fui atingida pelo racismo de maneira mais direta. Nas duas oportunidades, os episódios se deram na interação com o meu filho, que possui a pele branca. Fui confundida com a babá dele, porque no imaginário de muita gente, principalmente no bairro onde moro, uma mulher de pele mais escura cuidando de uma criança de pele clara só pode ser babá. Em um dos casos, ao relatar a amigos o ocorrido, fui questionada sobre a roupa que vestia, se eu estava arrumada o suficiente. Será que tenho que me vestir de longo para que seja reconhecida como a mãe do meu filho? Ainda que as pessoas negras furem o bloqueio social decorrente da falta de acesso à educação, saúde, saneamento, transporte de qualidade, elas estão sujeitas ao racismo que as descredibiliza quando ocupam lugares que majoritariamente é ocupado por brancos. O estigma permanece ainda que você tenha passado pelo filtro apertado do racismo estrutural.

[8/11, sexta-feira]

Dia corrido. Reflito sobre a fase da infância e sobre a falta de conversas sobre o racismo em casa. Os meus pais, apesar da origem muito pobre, tiveram mães que batalharam muito para que estudassem e fizessem faculdade. Fizeram universidade federal e digo com toda a certeza que o ciclo de exclusão foi rompido ali. O sacrifício deles nos garantiu uma vida confortável e a chance de usufruir de direitos negados a muitos negros e negras que não tiveram a minha sorte. Só que sabemos que o que eu chamo de sorte é direito constitucional que precisa ser cumprido, para reparar uma dívida histórica.

[9/11, sábado]

É dia de festa na escola do meu filho, uma Mostra de Arte e Cultura. Como eu já havia dito, a escola é integrada majoritariamente por crianças brancas. Ainda assim, existem crianças negras na escola e na sala dele, o que pra mim é um fator positivo. Os trabalhos expostos eram ótimos: maquetes retratando o centro de São Paulo, vídeos produzidos por eles trazendo temas relacionados com as questões urbanas vividas por São Paulo, contos de suspense escritos pelas crianças. O que noto de ponto positivo é que, diferentemente do que ocorria na minha época escolar, a história da escravização das pessoas negras foi contada e problematizada de uma forma muito mais crítica. E talvez como fruto disso tudo, vira e mexe eu ouço meu filho e seus colegas trazendo essa questão nas conversas. Os ouço questionando se alguém ou alguma manifestação cultural foi racista ou não, enfim, o assunto está na pauta, no dia a dia deles. Na minha época isso não se cogitava. Era um tabu.

Fui confundida com a babá do meu filho, porque no imaginário de muita gente uma mulher de pele mais escura cuidando de uma criança de pele clara só pode ser babá

Seguindo a agenda do dia, fomos eu e minha mãe almoçar num restaurante em Higienópolis [área nobre do centro de São Paulo], onde o de sempre ocorre: negros ocupando majoritariamente o lugar da serventia. Nada de novo sob o sol.

[10/11, domingo]

Aniversário de 11 anos do meu filho, o que é motivo de muita celebração e alegria. Essa data é o marco pessoal mais importante para mim, pois a maternidade me despertou para assuntos como o machismo e racismo. O olhar crítico para o mundo me faz enxergar ou ter que me posicionar sobre coisas que não via antes ou que não me sensibilizavam antes.

Uma delas é a questão do trabalho doméstico, assunto muito relevante na luta antirracista. Me deparei com a necessidade de ter que contratar uma pessoa para me ajudar com o meu filho, após a licença maternidade. Essa pessoa no Brasil, por conta da história marcada pela escravização, é a mulher negra que, em regra, deixa os seus filhos em casa, aos cuidados de outras pessoas ou até mesmo sozinhos, para cuidar do filho da patroa. Essa patroa neste caso sou eu, uma mulher negra também. Mesmo que com muito pouca consciência sobre essas mazelas sociais, instintivamente me vi fazendo um outro tipo de arranjo. Pois se eu seguisse aquele fluxo, seria mais uma criança negra relegada a segundo plano por sua mãe que passaria mais tempo com o filho da patroa do que com o seu próprio filho. Então, a primeira condição foi trazer essa criança para perto da mãe, na minha casa, e depois buscar melhorar outras condições de trabalho dessa mãe, que está na batalha para sair desse lugar e que quer também que seus filhos tenham acesso a direitos básicos. Temos um caminho longo a trilhar para que isso aconteça, mas já começamos o percurso.

Os dados por trás do relato



Gustavo Domingues de Oliveira, 27 anos, posa em frente à residência universitária da UFBA, em Salvador.
Gustavo Domingues de Oliveira, 27 anos, posa em frente à residência universitária da UFBA, em Salvador.Rafael Rodrigues


Meu nome é Gustavo Domingues de Oliveira, tenho 27 anos, e sou cotista. Curso o 7º semestre de fisioterapia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e moro com outros 36 estudantes, quase todos negros, em uma residência universitária no Corredor da Vitória, um dos metros quadrados mais caros de Salvador. Nasci no Grajaú, extremo sul de São Paulo, de mãe paulistana, negra, dona de casa. Meu pai é baiano, branco e trabalha como vigilante. Sou o caçula de três irmãos, um negro, mais velho, e uma irmã de pele clara e cabelo bem liso. Sempre me vi como uma pessoa mestiça até eu entender o sentido político de ser negro. Isso aconteceu aos 17 anos, quando entrei na faculdade de jornalismo, curso do qual desisti. Estava repetindo uma matéria e a professora perguntou se eu me sentia deslocado, como cotista. Com esse questionamento me percebi negro. Percebi que as pessoas que se pareciam comigo na universidade não eram outros estudantes. Sei que o questionamento dela foi para me incentivar, porque percebia que eu me sentia atrasado em relação aos colegas. Mas foi ali eu entendi que minha cor, meu cabelo, minhas roupas falavam antes de mim e que isso me definiria na sociedade. Assim foram os meus dias:

[04/11, segunda-feira]

Estava tão cansado que acordei às 14h. Dormi com meu namorado, porque, neste semestre, não tenho aula de segunda-feira. Passei o dia na residência. Apesar de ter jantar disponível para os bolsistas, não tenho o costume de comer à noite, prefiro um pão. Fui numa padaria aqui perto e parei para conversar com a funcionária, falando coisas bestas, de comer frituras e tal. Vi uma coxinha e fiquei tentado, mas pensei “não, com esse dinheiro da coxinha eu compro pão, ovo, muito mais do que uma coxinha, que não ia encher". Quando a gente não é rico, acaba pensando nessas coisas. E, quando é preto, percebe logo que cada centavo é valioso, suado. A gente já ganha menos, né? Fiz essa reflexão. E decidi comprar pão e ovo (risos).

Na conversa com a moça da padaria pude sentir que, como estamos em um bairro branco, ela não vê pessoas como ela para conversar. Essa é uma percepção minha, claro, não posso falar por ela. Mas essa percepção ali, de que ela teve alguém com o tom de pele mais próximo do dela e com quem ela pôde fazer esses comentários. Quando a gente é a única pessoa ou das poucas pessoas negras nos espaços, estamos sempre no lugar do trabalho, do serviço. Nosso diálogo é limitado a um “bom dia”, “pois não”, “o que o senhor deseja?”.

À noite me despedi do meu namorado, que também é negro. Eu gosto de ir até o ponto de ônibus com ele. Aqui, no Corredor da Vitória, não passa ônibus que vai direto para o Curuzu [um dos bairros mais negros de Salvador] então gosto de acompanhá-lo até o ponto. Acho que a preocupação da gente é maior, de estar transitando em um bairro branco, rico. Para uma pessoa preta andar só nas ruas de Salvador, ainda que seja a cidade mais preta fora da África, é perigoso de várias formas. E para um negro e homossexual é mais ainda, né? Porque se você é abordado pela polícia, não sabe se essa abordagem vai ser mais dura, mais forte por ser homossexual.

[05/11, terça-feira]

Virei a noite lendo e emendei em um filme. Tive aula pela manhã e à tarde fui à dentista. Adoro essa dentista, que fica aqui na Graça [bairro nobre de Salvador], porque ela não está nem aí. Você chega, ela te abraça, adoro ir lá.

Entre o fim da tarde e à noite, temos a tradição na residência de fazer um café e ficar conversando. A gente também vê as novelas, quando tem novela boa. A gente gosta de comentar, claro que a gente assiste criticando tudo, né? (risos). Sempre observamos os personagens negros, como os enredos deles não têm aquela família inteira formada, os personagens negros são quase sempre parte do enredo dos outros, do arco de outros personagens, não com seu núcleo próprio. Acho que por isso estamos ansiosos para ver Amor de Mãe, com Thaís Araújo como uma das protagonistas.

Quando a gente é a única pessoa ou das poucas pessoas negras nos espaços, estamos sempre no lugar do trabalho, do serviço. Nosso diálogo é limitado a um ‘bom dia’, ‘pois não’, ‘o que o senhor deseja?’.

Hoje eu falei sobre o diário para as meninas aqui na residência e uma delas me lembrou de uma coisa que eu já sabia, mas que é muito legal: a gente se antecipa nessa relação com as pessoas do bairro. Transita pelas ruas balançando a chave para mostrar que somos moradores, com uma sacolinha de mercado, com camiseta da UFBA. É mais seguro voltar para casa. Entrar no mercado e comprar um sabonete para ter uma sacolinha como sinalização de que você mora aqui perto, mesmo que seja na residência. A gente faz isso, cria códigos. Os policiais sempre acham nossos cabelos curiosos, né? A maioria dos negros da casa tem cabelo black, essa coroa da gente, que desafia a gravidade e cresce para cima.

[ 06/11, quarta-feira]

O início do dia foi bem tranquilo. Tive aulas à tarde. À noite, assistimos a novela das 21h e depois mudamos para a TVE, onde estava passando a série Travessias Negras, que trata sobre a vida dos estudantes negros na UFBA.

Faço parte dos núcleos LGBT e Negro da UFBA, porque é uma maneira de dar um retorno social para além de só estudar. Nada é feito para nós, então acho super válido ter pesquisas feitas dentro da universidade voltadas para essa população. Ou pouca coisa é feita, porque, em geral, a universidade está produzindo ciência para gerar dinheiro para quem já tem dinheiro. Uma vez que a universidade é pública, ela tem que produzir para a sociedade. O investimento tem que voltar para o grupo social ao qual você pertence, tem que voltar para a cidade da qual você veio.

Os que estamos aqui já somos a cota, o 0,02% dessa minoria de jovens que consegue chegar à universidade e muitas vezes ainda acha errado a gente [negros] estar lá. Isso é uma maluquice e temos que viver com isso na cabeça. Imagina quanta coisa tem que caber na cabeça de um estudante cotista? Quantas preocupações para além de estudar? Todo mundo tem que entender que a cota é o caminho para que a gente não precise mais da cota. Só que não é uma simples mudança de status, tem que vir bem estruturada, com apoio, com apoio uns nos outros, principalmente.

Hoje, eu li um tweet bem legal sobre o negro consciente. Não vou lembrar corretamente, mas é tipo ‘qualquer negro consciente tá revoltado, não tem como pedir calma’. Acho interessante essa visão, só não gosto de falar tanto em negro consciente, porque o consciente cria o inconsciente, e não temos só esses dois tipos de negros. Tem o negro consciente que tem dinheiro e o que não tem, por exemplo. Tem o que é consciente e é LGBT, e outro que não é. Somos muita coisa e precisamos de orientação para passar por isso, dentro de um mundo que se desumaniza cada vez mais. Não é fácil nem barato fazer esporte, fazer terapia para se entender. Eu só vou conseguir fazer terapia agora, no sistema da universidade, que é gratuito.

[07/11, quinta-feira]

Hoje trabalhei mais na organização de um evento, o Caruru da Diversidade. Como está começando o verão em Salvador e o período de ensaios de Carnaval, parei pra pensar em como, apesar de termos vários artistas negros, geralmente são as cantoras brancas que conseguem ter sucesso fora da Bahia e até internacionalmente…

Apesar de não ser baiana, admiro muito Iza, cantora negra que, depois de muito tempo, está alcançando sucesso e conseguindo falar de racismo e machismo em suas músicas, chegando não só às mulheres negras, mas também aos homens negros.

A gente transita pelas ruas balançando a chave para mostrar que somos moradores, com uma sacolinha de mercado, com camiseta da UFBA. É mais seguro

[08/11, sexta-feira]

Hoje não fiz nada, não tive forças para levantar. Não é todo dia que posso me dar ao luxo de me sentir cansado demais e permanecer deitado. Antes eu me cobrava, achava que eu não tinha o direito de aceitar quando não aguentasse o peso dos dias, sabe. Tem essa cultura que tá nas músicas, na dramaturgia e a gente perpetua, de estar sempre bem, de não ter frescura, enfrentar tudo e ainda sorrir. Hoje já entendo como tudo é muito mais profundo, que tem dia que não dá tempo pra sorrir, porque tem algo faltando. Coisas como justiça, como se sentir humano, pois quando falam “vidas humanas importam” eles excluem a gente, uma vez que por séculos a gente luta pra não esquecer que é humano. Pois quando a gente esquecer, ou vai ser porque eles venceram e acabaram com a gente, ou vai ser porque deixamos de querer igualdade e partimos para a revanche.

Os dados por trás do relato

Depoimentos a Joana Oliveira, Heloísa Mendonça e Felipe Betim. Colaboração: Talita Bedinelli.


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