Empresa de Paulo Guedes em paraíso fiscal expõe uma ética pública no limbo

Revelação de que ministro da Economia mantém ‘offshore’, feita pela investigação do ‘Pandora Papers’, evidencia um relaxamento dos controles sobre a conduta dos componentes do Governo federal

Ativistas decoram a entrada do Ministério da Economia com pés de galinhas e 'dólares' com a imagem de Paulo Guedes em um protesto contra a empresa do ministro em um paraíso fiscal nesta sexta-feira, em Brasília.Joédson Alves (EFE)

A investigação Pandora Papers tirou das sombras empresas offshore de importantes figuras públicas brasileiras e mostrou, como efeito colateral, um relaxamento dos controles sobre a ética no Governo Bolsonaro. O ministro da Economia, Paulo Guedes, não é o primeiro ministro de Estado a passar pelo escrutínio público em relação a seus negócios. Talvez o caso mais emblemático neste sentido seja o do ex-ministro do Esporte Orlando Silva, que teve que pedir demissão do Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2011, após ser acusado de se envolver em um esquema de desvio de recursos públicos. A investigação contra ele acabou arquivada quase um ano depois por “absoluta falta de provas”, segundo falou à época o jurista Sepúlveda Pertence, então presidente da Comissão de Ética Pública (CEP). Foi o fim de uma cruzada contra o ministro que havia começado em 2008, quando ele teve que justificar até mesmo a compra de uma tapioca no valor de 8,30 reais no cartão corporativo.

Os supostos desvios de conduta de Guedes ―ao manter seu dinheiro protegido em dólar, enquanto negocia facilidades para quem tem offshore na reforma tributária―, por outro lado, foram recebidos com maior indulgência. “A discussão sobre a moralidade pública é cíclica e aparece e desaparece como tema central da política brasileira de tempos em tempos”, afirma Oscar Vilhena Vieira, diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Às vezes, esse tema vive um período de maior intensidade, como aconteceu no Mensalão e no início da Lava Jato, que tiveram como rebote um acirramento na legislação de combate à corrupção, com a lei de transparência e das organizações criminosas.

Segundo Vieira, porém, o país vive agora um momento de regressão em relação ao tema da integridade pública. “A lei de improbidade administrativa que foi aprovada a partir do escândalo do Governo Collor, por exemplo, está sendo desmontada. Há um certo relaxamento [dos gestores públicos], que têm a sensação de que tudo é permitido”, afirma. “O que assistimos agora é fruto de uma percepção de que a guarda foi baixada e que, portanto, não é tão importante demonstrar que se comporta corretamente.”

Nem todos estão alheios aos negócios de Guedes. Uma manifestação modesta à porta do Ministério da Economia nesta sexta-feira tentou passar a mensagem de que, no momento em que ganham a mídia fotos de brasileiros tendo de se contentar com restos de ossos para sanar a fome, é no mínimo imoral que um ministro lucre ao se proteger das oscilações da economia fora do país. A frase “Guedes no paraíso e o povo no inferno” foi pichada na entrada do órgão em Brasília, onde ativistas atiraram pés de galinhas e ossos, juntamente a notas falsas de 100 dólares com a imagem do ministro.

O Fórum das Carreiras de Estado (Fonacate) apresentou uma denúncia contra o ministro da Economia por violações ao Código de Conduta da Alta Administração Federal e ao Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil. Eles alegam que há, sim, conflito de interesses na manutenção de uma offshore em paraíso fiscal por Guedes. “Para além de ilegal, é imoral e desonesto que o ministro da Economia, o qual já acusou servidores públicos de serem parasitas do Estado, mantenha a gestão de ativos milionários em contas de paraísos fiscais no exterior e, ainda, que são valorizados de forma instantânea por variações cambiais diretamente influenciadas por suas decisões como agente público, permitindo-o, assim, lucrar milhões de reais sem qualquer esforço”, afirma o documento elaborado pela assessoria jurídica do fórum.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e a Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed) chegaram a pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) que solicitasse à Procuradoria-Geral da República (PGR) uma investigação sobre a existência das offshores de Guedes e do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, uma vez que ambos são membros do Comitê Monetário Nacional (CMN) responsável pelas políticas de câmbio e crédito do país e mantiveram as empresas após assumir o cargo público. Mas os pedidos foram arquivados pelo ministro Dias Toffoli, que entendeu que não é papel do STF solicitar “abertura de investigação”. Em nota, os advogados de Guedes afirmaram neste sábado que o arquivamento “é mais uma demonstração inequívoca de que não há ilegalidade em manter um veículo de investimento no exterior, declarado à Receita e demais órgãos competentes”. A defesa de Guedes alega que os documentos apresentados à PGR demonstram que o ministro se afastou da gestão da empresa e “jamais se beneficiou, de qualquer forma, do cargo que ocupa”.

Guedes não parece nem um pouco incomodado com as críticas. Em evento do banco Itaú BBA na sexta-feira justificou apenas que sua offshore é legal. “Ela foi declarada, não houve movimento cruzando as fronteiras, trazendo dinheiro do exterior ou mandando dinheiro ao exterior”, afirmou. O ministro, que até então havia falado sobre o caso apenas por meio de seus advogados, fez questão de informar que “perdeu muito dinheiro” desde que assumiu o cargo público, e que seus investimentos no Brasil são geridos por um blind trust, um fundo onde gestores externos têm total controle sobre os ativos, a fim de evitar conflitos de interesse dos verdadeiros acionistas. A postura do ministro é de alguém que não parece interessado em dar satisfações. Guedes não apresentou documentos que comprovem suas palavras e se limita a dizer que os órgãos competentes já foram informados.

Ética pública

A própria Comissão de Ética Pública, que analisou os negócios de Guedes em maio de 2019, acabou dando amparo à postura do ministro. O órgão criado em 1999, que tem como função servir de instância consultiva ao presidente da República e aos ministros de Estado em matéria de ética pública, informou em nota que, após a análise da documentação enviada por Guedes, verificou-se que o próprio ministro iria adotar “medidas para mitigar ou prevenir a ocorrência de conflitos de interesses”. Questionada pela reportagem sobre quais medidas são essas, a CEP se limitou a afirmar que “dentre as medidas usualmente determinadas e aceitas pela Comissão, encontra-se a recomendação de manter inalteradas as posições de seus investimentos durante todo o exercício do cargo”.

Nem sempre foi assim. Em outros momentos, ministros com cargos semelhantes tiveram respostas mais rígidas da CEP, como aconteceu com Henrique Meirelles, então ministro da Fazenda de Michel Temer. Em agosto de 2016, a CEP divulgou o relatório sobre o caso de um potencial conflito de interesses de Meirelles ao receber dividendos de uma empresa de que era sócio. A consulta ao órgão foi pedida pelo próprio ministro, em um momento que o Governo estava às turras com parte da opinião pública. O parecer da CEP recomendava que Meirelles só poderia receber lucros acumulados pela sua empresa até 30 de abril de 2016, em período anterior à sua posse, mesmo que o ministro afirmasse que as decisões de investimento de sua empresa cabiam a uma administradora, em um modelo similar ao blind trust.

O advogado Mauro Menezes, que foi conselheiro do órgão entre 2012 e 2018, e relator do caso de Meirelles, explica que a confidencialidade é uma parte importante do trabalho da CEP. Porém, quando o interesse público exige maior transparência, ele defende que os documentos devem ser compartilhados. “A Comissão de Ética não é uma caixa preta”, explica. O EL PAÍS pediu à CEP que tornasse público o relatório da análise inicial do caso de Guedes, de 2019, mas, até a publicação desta reportagem, não teve resposta. O órgão informou apenas que não pode revelar nada sobre novas investigações, uma vez que a lei diz que a apuração de infração ética deve ter a chancela de sigilo “reservado”. Isto significa que o caso não pode ser de conhecimento do público geral até que seja concluído. O órgão ressaltou ainda que “quaisquer denúncias, representações e novas informações serão apuradas”, conforme prevê o Código de Conduta da Alta Administração Federal.

Não existe carta branca no Governo

Menezes explica que não basta Guedes ter prestado contas à CEP no início de seu mandato para dizer que não há conflito de interesse, pois o modelo de controle tem que ser permanente. “O mero fato de ter havido essa informação não confere à autoridade uma carta branca para tomar decisões como queira ao longo de seu cargo”, explica o ex-conselheiro. Ele admite que apenas ser cotista de uma empresa de um paraíso fiscal, em princípio, não é um obstáculo para que alguém exerça uma função pública. Porém, isso não exime o ministro de prestar contas de atos que eventualmente o beneficiaram em seus negócios privados, como a reforma tributária. “Se por um lado não é ilícito ter uma offshore, é bastante questionável que autoridades, sobretudo da área monetária, que devem zelar pela estabilidade econômica e estímulo da receita do país, mantenham seus investimentos a salvo da instabilidade e ainda com ônus tributário”, afirma.

Menezes lembra ainda que a CEP não tem a prerrogativa de demitir ninguém, mas pode sugerir o afastamento de autoridades. Foi o que aconteceu no Governo Dilma Rousseff com a exoneração de Carlos Lupi do cargo de Ministro do Trabalho e Emprego. Na época, as explicações dadas pelo ministro sobre as denúncias de irregularidades no Ministério não foram consideradas convincentes pela Comissão de Ética. Os seis conselheiros que compõem o órgão, e são indicados pela Presidência da República, votaram por unanimidade pelo afastamento do ministro. Paralelamente à investigação que deverá ser feita na CEP, Guedes também terá de se explicar à Câmara dos Deputados. A audiência ainda não tem data, mas pode acontecer já na próxima semana.

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