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Uma semente chamada Nazaré Flor

A história de uma das fundadoras do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste, que virou filme e até hoje é fonte de inspiração em um assentamento no Ceará

Igreja do assentamento Maceió: um sonho de Nazaré, construída três anos após a sua morte. No vídeo, o trailer do filme 'Terra de Nazaré', de Shaynna Pidori.Vídeo: Rebeca Figueiredo.
Marina Rossi

“Você já reparou que mulher nunca tem nome? Quando é menina, é a filha de fulano. Depois que casa, vira a mulher de beltrano. A gente nunca tem o nome da gente”. Traindo sua própria filosofia, Maria Nazaré de Sousa nunca foi conhecida pelo pai que teve, ou pelo marido com quem se casou. A mulher que reclamou do anonimato feminino ganhou popularidade graças à militância política, à poesia e às músicas que ela mesma compôs. Em seu legado estão contabilizados a publicação de livros, a conquista de um território, a construção de escolas e uma legião de mulheres que se inspiraram em Nazaré Flor, como ela era conhecida, e em sua luta.

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Nazaré nasceu e cresceu em um pedaço privilegiado do Nordeste do Brasil, em 1955. Itapipoca, a 130 quilômetros de Fortaleza (CE), é conhecida como “a cidade dos três climas”, por ter praia, serra e sertão. Ali, num cenário paradisíaco formado por dunas, lagoas de água cristalina e o mar, um pedaço do chão de areia fofa é também um pedaço da história de luta. Longe do centro da cidade de pouco mais de 56.000 habitantes, nas margens do litoral, o assentamento Maceió, composto por 12 comunidades, é símbolo da conquista de um povo liderado por mulheres.

A história do assentamento Maceió é permeada pela história da criação do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE), do qual Nazaré Flor foi uma das fundadoras. A terra conquistada é uma das vitórias do movimento que tem no empoderamento feminino seu maior legado. "As mulheres se organizavam em grupos de orações naquela época", lembra Vera Lúcia Teixeira, 64, parceira de militância de Nazaré. Era início dos anos 80 e o Brasil ensaiava seu retorno à democracia. "Ouvimos falar que haveria um encontro de esposas. Aí eu falei para Nazaré: e as mulheres que não são casadas e querem participar? Assim criamos o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste".

Com a força do MMTR, em 1985, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realiza a desapropriação da terra e o assentamento Maceió é criado. A conquista, porém, era apenas o começo. Liderada por Nazaré, a comunidade se organizou para lutar por educação e direitos básicos, como a emissão de documentos para as trabalhadoras rurais, até então sem identidade.

Nazaré Flor não gerou filhos, mas criou dois e deixou muitas sementes. Na esteira da luta por direitos básicos, a filha adotiva Valda Matias, 33, se recorda ainda hoje da construção da escola de ensino fundamental da comunidade. "Levávamos o material de construção na cabeça, em fileiras, iguais a umas formiguinhas", diz. Hoje ela é professora da escola que ajudou a construir. "Eu conto para os alunos como foi e eles não acreditam".

O legado de Nazaré vem sendo construído até hoje, 12 anos após sua morte. Vítima de um câncer de útero, a líder rural não pode ver a inauguração da escola que leva seu nome, a única de Ensino Médio do assentamento. Nem da igreja que sonhou para a comunidade, construída três anos após a sua morte. Também não pode assistir à estreia do filme sobre ela mesma, Terra de Nazaré.

Nazaré Flor em cena do filme 'Terra de Nazaré'.
Nazaré Flor em cena do filme 'Terra de Nazaré'.

Dirigido por Shaynna Pidori, o média-metragem nasceu da ideia de se fazer um filme sobre sete mulheres do sertão brasileiro, em 2005. Nazaré entre elas. Mas o material gravado acabou ficando guardado e só foi parar na ilha de edição depois que o projeto foi um dos selecionados pelo Rumos Itaú Cultural. "Nazaré tinha muita expectativa com o filme. E eu sentia que tinha uma espécie de dívida com ela", conta Shaynna. "Além disso, após a sua morte, o grupo de mulheres aqui do assentamento se fortaleceu. Isso me chamou a atenção". Como o filme foi finalizado após a morte de Nazaré, seu roteiro foi feito com a ajuda das mulheres que conviveram com ela, por meio de oficinas.

A voz das mulheres

As histórias de luta do assentamento Maceió são passadas de geração em geração."Desde pequena eu ouço a história do assentamento e o quanto Nazaré foi importante", conta a estudante Bárbara dos Santos, 18. "Meus avós sempre contavam". Ela faz parte do grupo de percussão Balanço do Coqueiro, criado em 2010 no assentamento. "A gente se guia muito pelo MMTR e buscamos levar a nossa história para outros lugares onde nos apresentamos".

Nazaré Flor não gerou filhos, mas criou dois e deixou muitas sementes

Mas, apesar da força feminina pulsante no local, o cotidiano do assentamento Maceió ainda é como qualquer lugar do Brasil. "A divisão de trabalhos em casa ainda é pouca", diz Bárbara. "O debate sobre isso ainda é bem tímido. São poucos os homens que dividem tarefas de casa e os que fazem, muitas vezes são ridicularizados". 

Para uma plateia de homens, mulheres e muitas crianças, a estreia do filme ocorreu no final de abril, no assentamento Maceió. Na parede lateral da igreja, construída três anos a após a morte de Nazaré, Terra de Nazaré foi projetado. Antes da exibição, o grupo Balanço do Coqueiro e o grupo de teatro local se apresentaram em homenagem a Nazaré. Algumas das mulheres que participaram do filme subiram nas escadas da igreja e falaram sobre a líder rural. Alguns dos seus poemas foram lidos e outro, em homenagem à ela, também foi recitado: "Nós somos frutos seu, de sua planta, de sua semente".

 A reportagem viajou a convite do Rumos Itaú Cultural

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