Facebook infla perfis para vender mais anúncios
Rede social atribui milhares de interesses aos seus usuários para permitir que anunciantes sempre tenham público disponível, revela artigo científico
Quantos assuntos podem interessar uma pessoa a ponto de fazê-la gastar tempo e dinheiro? Milhares, segundo o Facebook.
Os interesses dos usuários são um dos modos mais úteis para que os anunciantes escolham seu público no Facebook. Assim, pessoas interessadas em “Caribe” e que “viajam com frequência” têm maior probabilidade de verem publicidade de resorts na República Dominicana, por exemplo. É um serviço aparentemente útil, porque oferece anúncios mais próximos da experiência do usuário: “Desenvolvemos nosso sistema de anúncios para que mostre menos anúncios irrelevantes (o que é uma das grandes queixa [dos usuários])”, dizia Rob Goldman, vice-presidente de anúncios do Facebook, em um tuíte publicado nesta quinta-feira.
10% dos usuários chegam a ter entre cerca de 1.000 e quase 9.000 preferências
Mas a companhia, segundo um novo artigo científico, infla os interesses dos usuários, a tal ponto que o valor dessa informação pode acabar diluído. O número médio de interesses por usuário é de 300 a 350. Mas em 10% dos casos há entre cerca de 1.000 a quase 9.000 assuntos destacados. No outro extremo, o dos 10% de usuários com menos interesses, o Facebook direciona anúncios relativos a menos de 50 preferências.
Procurado pelo EL PAÍS, o Facebook disse que não dispõe de uma cifra relativa à média de interesses de cada usuário.
Esse dado sobre os interesses não é público. Os pesquisadores criaram uma extensão para Chrome e Firefox que, uma vez baixada e dada a autorização, permite calcular o valor de cada usuário no Facebook segundo os anúncios que ele vê. Com essa extensão, os pesquisadores reuniram, entre outubro de 2016 e maio de 2018, uma base de dados de sete milhões de anúncios disparados por 140.000 anunciantes e destinados a mais de 5.000 usuários.
O artigo intitulado Análise em Grande Escala da Exposição do Usuário à Publicidade On-line do Facebook, de Aritz Arrate, José González Cabañas, Ángel Cuevas, María Calderón e Rubén Cuevas, da Universidade Carlos III, em Madri, será publicado nas próximas semanas pelo IEEE Access, mas é possível ler aqui uma versão pública prévia, noticiada em primeira mão pelo EL PAÍS.
Duas consequências
Quais as consequências desses perfis inflados? Há pelo menos uma para os usuários, e outra para os anunciantes.
Uma das grandes vantagens do Facebook é sua capacidade de microagrupar audiências: há públicos separados com interesse em bolas de gude, selos austro-húngaros, colônias chinesas e pássaros raros. Há vários modos de cruzar dados para procurar audiências no Facebook: por perfil (gênero, idade), por comportamentos (o que inclui a chamada “afinidade multicultural”, eufemismo para “raça”, o quanto você viaja, onde já morou e qual celular usa) e interesses, milhões deles.
Os anunciantes que pagam diariamente para que seus anúncios cheguem a uma audiência precisam de centenas de milhares de pessoas etiquetadas com as características que procuram. “O Facebook precisa vender muitos espaços publicitários”, diz Ángel Cuevas, um dos autores. “Precisa ter muita flexibilidade para encher esses espaços. Se os perfis forem muito estreitos, talvez haja usuários que não tenham nada para ver quando se conectarem, pode ser que haja anunciantes, mas nenhum aponte para esse usuário com sua campanha. Se por outro lado, fazem um perfil amplo a seu respeito, ele serve para mais coisas.”
O Facebook só usa em média um pouco mais de 20% das etiquetas atribuídas a cada usuário
O Facebook só usa em média um pouco mais de 20% das etiquetas que põe em cada usuário. O resto é quinquilharia, embora cada usuário aparentemente tenha quinquilharia suficiente para que os anunciantes encontrem suas presas. O Facebook defende essa inflação nos perfis mencionando o uso que cada um faz da rede. “Que os usuários tenham tantos interesses é bom enquanto os anunciantes não perceberem”, diz Cuevas.
Interesses delicados
Por que o excesso de tags pode ser um problema para o usuário? É um assunto delicado. Na semana passada, viralizou uma carta de Gillian Brockell, editora de vídeos do The Washington Post, pedindo ao Facebook e outras redes que não lhe mandem mais anúncios de maternidade, porque ela tinha perdido o seu bebê. A mulher relatava que o algoritmo tinha detectado que ela clicara em anúncios de roupas de bebê, que ela havia escrito sobre sua gravidez, e com isso teve um início uma chuva de anúncios para futuras mamães.
Mas o algoritmo não conseguiu enxergar seu desespero quando abortou: “Nunca pedi anúncios de gravidez ou maternidade, essas empresas tecnológicas os emitiram porque quiseram, baseando-se em informação que compartilhei. Então agora o que peço é que tenham alertas para apagar esse histórico por si mesmos, baseando-se na informação que compartilho”.
É provável que a última coisa que o Facebook deseje seja um botão para tirar alguém do interesse “maternidade”, que deve ser um dos mais rentáveis.
Para entender a precisão de que o Facebook é capaz, ele pode lhe dizer quantas pessoas têm a etiqueta de “homossexual” e estão de passagem pelo Afeganistão: 4.600
Neste caso, trata-se de um interesse doloroso do ponto de vista emocional e pessoal, e o problema foi não ter sido desativado. Por outro lado, um dos autores do artigo foi associado durante alguns meses aos interesses “homossexual” e “Carlos Herrera” — sendo que ele é heterossexual e não escuta os programas desse radialista espanhol. Outro pesquisador aparece associado aos interesses “Hugo Chávez”, “Nicolás Maduro” e uma universidade venezuelana. Na Espanha, a orientação sexual ou ideológica de um cidadão não causa maiores riscos, mas na Arábia Saudita há 250.000 pessoas com a etiqueta “homossexual”. No Afeganistão, ainda mais. Para entender a precisão de que o Facebook é capaz, ele sabe dizer quem tem a etiqueta de “homossexual” e está de passagem pelo Afeganistão: 4.600 pessoas.
O perigo destes interesses é relativo. O Facebook não vende esses dados, apenas comercializa o acesso a essa audiência. Mas há estratégias para averiguar quem recebe esses anúncios. Por exemplo, lançar um anúncio, sortear algo valioso e pedir os dados para participar. Tudo isso, além do mais, com milhares de etiquetas acrescidas indevidamente.
Por último, esse dado dá uma ideia da capacidade do Facebook de inferir detalhes da nossa vida. Nem sempre ele acerta, mas não sabemos se o motivo é porque não quer aperfeiçoá-lo mais. Como o Facebook atribui interesses? Pelas curtidas e cliques no próprio Facebook, claro. Mas a rede também reúne informações da internet para cada usuário. Aqui, cada usuário pode ver os interesses que lhe são atribuídos.
O artigo detectou outros detalhes também. Os usuários veem em média 70 anúncios por semana, 6 por sessão e 0,8 por minuto de navegação no Facebook. Isso implica que os anúncios representam entre 10 e 15% do tempo consumido no Facebook.
Junto ao inchaço nos perfis, os resultados revelam outros dois dados muito interessantes: um, que há cerca de 9% de usuários que veem mais anúncios que os demais. E, dois, para os anunciantes que prolongam sua campanha imensamente, a probabilidade de que um usuário clique num anúncio cresce muito pouco na medida em que ele receba mais anúncios. Ou seja, o anúncio com mais chances de ser clicado é justamente o primeiro.
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