Coluna

A questão de Jerusalém

A impulsividade da decisão anunciada na semana passada demonstra uma manobra política de gravíssimas consequências

Jerusalém depois do anúncio da mudança na embaixada dos EUA.JIM HOLLANDER (EFE)
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É muito arriscado escrever sobre situações que estão em andamento. Mas Jerusalém é, na verdade, um tema atemporal. A cidade é o berço das três mais importantes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Passou ao longo dos séculos por diferentes soberanias, cada qual reivindicando sua primazia. No pós-guerra, após o domínio britânico, a criação do Estado de Israel pela ONU trouxe conturbações ainda vigentes setenta anos depois. Nestes últimos dias, o reconhecimento pelos Estados Unidos de Jerusalém como capital de Israel e a prometida mudança da Embaixada representa um golpe muito duro – talvez irreversível – às possibilidades de criação de um Estado Palestino, o que prolongará indefinidamente o conflito na região.

Em 1947, os Estados árabes começaram a arregimentar forças para incluir na agenda da Assembleia Geral da ONU item destinado a discutir e proclamar a independência da Palestina. O tema estacionou após longo debate entre os membros e a representação sionista (não governamental), apoiada pelos Estados Unidos. A União Soviética, meses depois do início da discussão, acabou apoiando a partição da Palestina.

O tema foi finalmente confiado a um Comitê Especial sobre a Palestina encarregado de fazer sugestões à Assembleia Geral. As lideranças árabes alegaram que até o surgimento do movimento sionista, ambas as partes conviviam em paz. Entre vários argumentos, acentuava-se o fato de que os árabes palestinos não eram culpados, nem deveriam ser punidos pelos crimes cometidos pela Alemanha nazista e pagar sozinhos o preço do acolhimento dos refugiados judeus.

Após incontáveis controvérsias, o Comitê sugeriu, em setembro de 1947, que a Palestina fosse dividida entre um Estado árabe e um Estado judeu, e que Jerusalém deveria ser uma entidade independente, uma cidade universal, sob a tutela da ONU.

O tema passou então às mãos da Segunda Assembleia Geral da ONU que, por sua vez, instituiu um Comitê Ad Hoc sobre a Palestina ao qual foi confiada a busca pela solução do problema. As divisões continuaram: os árabes insistiram em sua oposição aos sionistas e argumentaram que estes receberiam a melhor parte da Palestina, alegando que não seria justo atribuir autodeterminação a quinhentos mil judeus e recusá-la a outros quinhentos mil árabes dentro do proposto Estado judeu.

A partição, contudo, dada a extrema mobilização de comunidades judaicas junto aos então poucos membros da ONU, foi ganhando terreno, inclusive com o apoio da União Soviética. O Presidente Harry Truman mobilizou-se pessoalmente.

O Ministro Oswaldo Aranha, então Presidente da Assembleia Geral, contribuiu com manobras processuais para ampliar o apoio à partição. A decisão foi finalmente tomada, após uma segunda manobra processual proposta pela França. A chamada Resolução de Partição passou por 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções.

Em seu livro The Arab-Israeli Dilemma, aparecido em 1968, o Professor Fred J. Khouri narra minuciosamente a confrontação derivada da partição da Palestina e da criação do Estado de Israel. Foi-me extremamente útil no período de 1971 a 1974, em que servi na Missão junto à ONU. O Brasil oscilava entre a ambiguidade e o apoio a Israel. Passamos então a uma política de “equidistância” que logo seria posta abaixo pela crise do petróleo de 1973, em virtude da qual o Brasil, completamente dependente do petróleo árabe, bandeou-se para o lado palestino.

Assim começou a fase crítica de um problema que se arrasta há séculos e que se transformou no que hoje denominamos o conflito árabe-israelense com todas as suas conotações ideológicas e suas ramificações.

Um livro seria pequeno para narrar com detalhes as guerras que se seguiram, as expectativas que se criaram e se desfizeram ao longo das décadas seguintes. Hoje, Israel tornou-se uma potência nuclear (não admitida) e um país rico, cuja capital passou a ser Jerusalém, declarada unilateralmente em 1980 como “capital eterna e indivisível” do país.

Algumas vezes foi-me perguntado por que não insistir num papel mediador para o Brasil, já que no nosso país as comunidades árabe e judaica convivem harmoniosamente. Respondo sempre: convivem bem aqui, afastadas que estão da realidade da questão. O problema é lá, no território onde a tradição milenar de antagonismos é assoberbante.

Os homens se dispõem a morrer em luta por duas questões principais: pátria e religião. Entre Israel e a Palestina – e por extensão os demais países árabes – as duas questões se misturam perigosamente.

A grande indagação para o futuro será a de saber se efetivamente os EUA implementarão a promessa de Trump de reconhecer definitivamente Jerusalém como a capital de Israel e de transferir para lá a Embaixada dos Estados Unidos. Uma decisão ousada que outros presidentes americanos chegaram a pensar em tomar, mas na verdade jamais o fizeram.

Dificilmente pode-se acusar os antecessores de Trump de indiferença, irresponsabilidade ou pusilanimidade. A reticência em adotar a medida anunciada pelo atual presidente baseia-se certamente numa cuidadosa reflexão sobre as inevitáveis consequências do ato – sua repercussão sobre a paz na região e sobre a perspectiva de um futuro acordo entre as partes. A impulsividade e o principismo da decisão anunciada na semana passada demonstram, a meu ver, mais uma manobra política de gravíssimas consequências do que um suposto reconhecimento de uma justa reivindicação. A primeira responsabilidade das grandes potências, diante da situação explosiva que ultrapassa de longe as fronteiras palestino-israelenses, envolvendo todos os países árabes e incentivando fanatismos de todos os lados, é de buscar uma difícil - é verdade - solução pacífica à questão do Oriente Médio.

Vislumbrar tal solução pode ser utópico, mas o gesto desavisado – sem entrar no mérito da questão - do Presidente Trump só contribui para adicionar lenha à fogueira e tornar ainda mais inviável qualquer projeto de paz e boa vizinhança.

Montesquieu certa vez escreveu, referindo-se às guerras de religião, uma frase que me parece adequar-se bem à situação que estamos vivendo: “As guerras de religião não são causadas pelo fato de existir mais de uma religião, mas pelo espírito de intolerância… cuja disseminação só pode ser considerada como o eclipse total da razão humana.”

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