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Tecnologia e a ameaça aos direitos fundamentais da vida em democracia

Conceitos como soberania nacional e direito à privacidade mudaram de significado sem um debate público

Um número crescente de assuntos de interesse público acontece e é resolvido no mundo dos dados. A liberdade de expressão, os meios de comunicação, a privacidade individual e até mesmo temas relacionados aos direitos políticos… Refiro-me aos dados no sentido informático do termo. Isto é, desde os registros gerados pelos dispositivos móveis hoje usados por milhares de milhões de pessoas, até enormes arquivos com informação financeira, de mobilidade, de passageiros, de transações de cartões de crédito, passando por dispositivos que monitoram atividades pessoais ou mesmo pelos chamados metadados colhidos por operadores de telefonia.

Um homem captado pelo Street View do Google em Barcelona.
Um homem captado pelo Street View do Google em Barcelona.

Com a Internet, o crescimento dos dispositivos móveis e a comunicação onipresente em que boa parte da humanidade participa hoje, vem surgindo uma nova dimensão virtual onde se acumula um minucioso registro de importantes implicações sociais, individuais e institucionais.

A tecnologia avançou a grande velocidade e desenvolveu capacidades técnicas até recentemente inimagináveis, mas os marcos jurídicos, as ferramentas legais e os foros de discussão pública sobre essas questões não a acompanharam.

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Sem que percebêssemos, conceitos como a soberania dos Estados, as fronteiras, a censura e o direito à privacidade foram se esvaziando ou mudando de significado sem a discussão pública necessária na democracia. Os Estados perdem capacidade de fazer valer as regras do jogo dentro de suas fronteiras ao mesmo tempo que esse poder se dispersa e fragmenta e seu controle passa do âmbito público ao privado.

Um exemplo recente foi o tortuoso esforço das autoridades europeias para fazer valer o chamado direito ao esquecimento, uma tentativa de adaptar a legislação de vários países e aplicar seu equivalente digital a toda a UE. Pode ser definido, em poucas palavras, como o direito de solicitar que sejam apagados ou retirados da Internet dados ou informações pessoais considerados obsoletos, irrelevantes ou que interfiram nos direitos fundamentais do indivíduo. Depois de longas negociações e resistência por parte das empresas de tecnologia às quais se dirigia a iniciativa, a Comissão Europeia chegou a um acordo com os grandes buscadores. Os dados solicitados foram eliminados das versões europeias dos buscadores, mas permaneceram nas versões dos Estados Unidos e de outros países. Esse exemplo evidencia as dificuldades para conciliar normas estatais e mudanças nos usos tecnológicos.

Um assunto de difícil resolução que deveria obrigar os Estados a tomar a iniciativa para encontrar vias de conciliação normativa e abordar os casos cada vez mais frequentes em que empresas de tecnologia operam em escala global, mas escolhem uma jurisdição estatal para basear suas regras de operações (um fenômeno similar ao de grandes empresas transnacionais que estabelecem suas sedes em paraísos fiscais para fins tributários).

Em 2013, o Google foi sancionado na Alemanha por utilizar o Street View para compilar dados das redes wifi abertas encontradas pelos carros que, em princípio, estavam fotografando as ruas e estradas do país – um tema legislado de maneira muito diferente na Alemanha e nos Estados Unidos –. Outras empresas como Facebook ou Twitter tiveram diversos problemas com autoridades estatais quando eliminaram conteúdos ou se negaram a ceder informações em casos de investigação criminal. No final do ano passado, um juiz no Brasil ordenou a interrupção do serviço do WhatsApp por 48 horas e, em fevereiro deste ano, um diretor do Facebook (proprietária do WhatsApp) foi preso depois que a empresa se negou a fornecer mensagens de um usuário investigado pela polícia brasileira.

A tecnologia avança mais rápido que as ferramentas legais no tocante às questões que suscita

No caso dos algoritmos, o controle e a prestação de contas em assuntos de interesse público são ainda mais complexos que com os dados. A maior parte dessas plataformas não divulga informação sobre seu funcionamento interno e, quando as autoridades solicitam explicações, invocam o direito de não revelar detalhes sobre sua propriedade intelectual. Isto é, sobre o porquê de certos temas, candidatos ou informações aparecerem acima de outros, não aparecerem ou desaparecerem de repente. Formas novas e muito mais sutis de censura direta ou influência velada que até muito recentemente não existiam.

A importância crescente de dados, algoritmos e sua relação com um amplo número de temas de interesse público requerem uma discussão mais ampla e informada sobre essa nova dimensão da esfera pública e o marco efetivo de regulação do Estado. Sem essa discussão, direitos fundamentais da vida em democracia correm o risco de ser atropelados pela velocidade do avanço tecnológico.

Diego Beas é autor de La Reinvención de la Política (Peninsula), foi pesquisador convidado do Instituto de Internet da Universidade de Oxford. No Twitter: @diegobeas

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