Não morremos ainda!
Confio é nessa gente comprometida em mudar o mundo, que almeja não o reconhecimento mesquinho e vaidoso, mas afetar verdadeiramente o outro. É isso que me mantém vivo
A democracia brasileira tateia em campo minado. Historicamente, vimos construindo um país injusto, violento, intolerante. Nosso nascimento ocorre com o genocídio dos povos indígenas, ainda hoje discriminados, agredidos, marginalizados. A mancha da escravidão de africanos, abolida há apenas 127 anos, paira sobre a sociedade: os afrodescendentes ainda hoje são marginalizados, agredidos, discriminados. O machismo tupiniquim é notório, alimentado pela autoimagem nacional, da qual participa até mesmo o Estado em suas lamentáveis propagandas ufanistas no exterior. A política institucional (que inclui o Executivo, o Legislativo e o Judiciário) é abominável, corroída pela corrupção, pelo cinismo, pelo compadrio. O tráfico de drogas, e a selvageria que o acompanha, pouco a pouco sitia as cidades, cassando o nosso direito elementar de circular pelas ruas. Às vezes, apodera-se de mim um desânimo, um pessimismo, um desconsolo. Mas, aí, lembro de uma advertência de minha mãe: não morremos ainda. Sim, não morremos ainda!
Se nos encerramos acossados em nossos exíguos espaços de conforto, perdemos a oportunidade de ouvir as vozes dissidentes que, anônimas mas firmes, vêm tomando corpo a partir das periferias. Dos mais improváveis lugares surgem jovens idealistas que acreditam em mudanças na sociedade por meio da transformação pessoal, possível a partir do contato direto com os livros que emulam a necessidade de compartilhar ideias e trocar impressões, ampliando a visão do mundo e alicerçando a certeza de que estamos na vida para fazer diferença. Entusiasmados, eles aprendem na prática que a política é o exercício da cidadania, consequência direta da apropriação do espaço que nos rodeia. São movimentos autônomos, auto-sustentáveis, onde crescem lideranças masculinas e femininas que desafiam as maneiras clássicas de atuação coletiva.
Talvez uma das primeiras experiências dessa nova maneira de agir tenha sido aquela que até hoje é capitaneada por Sergio Vaz, no Jardim Guarujá, em São Paulo. Em 2001, ele converteu as mesas do Bar do Zé Batidão num local de encontro de artistas do bairro, então uma região pobre e violenta da zona sul da cidade. Aos poucos, o que parecia um devaneio do poeta tornava-se um surpreendente território para manifestação de talentos insuspeitos. Assim nascia a Cooperifa, que mudou completamente o perfil do lugar e serviu de inspiração para centenas de iniciativas semelhantes espalhadas por todo Brasil. A pequena estante virou biblioteca e o sarau desdobrou-se em projetos como Poesia no Ar, que lança balões coloridos de gás hélio prenhes de poemas, a Chuva de Poesia, que distribui gratuitamente livros para a população, o Cinema na Laje, que exibe filmes ao ar livre...
A virada do século marcou a irrupção da autodenominada literatura marginal, movimento em que pela primeira vez os excluídos falam de sua própria realidade, sem mediação, fato inédito na literatura brasileira, só encontrável antes nos livros de Carolina Maria de Jesus, particularmente em seu Quarto de despejo, lançado em 1960. A necessidade de autorepresentação acabou criando um mercado editorial paralelo de produção e consumo: os autores autopublicam-se e vendem seus livros de mão em mão para leitores ávidos. Nome mais conhecido da literatura marginal, Ferrez, surgido em 2000 com o romance Capão Pecado, tornou-se figura emblemática do papel do intelectual engajado. Autor de mais de uma dezena de títulos, entre romances, contos, crônicas, infantis e história em quadrinhos, ele usa todos os espaços possíveis para discutir política, pois entende que fazer literatura é contribuir para mudanças sociais. Generoso, com o Selo Povo, de sua propriedade, revela novos autores, e com suas letras musicadas em raps de sucesso amplia o acesso a seu público.
Da mesma maneira, buscando facilitar o acesso da população ao debate público, Écio Salles e Julio Ludemir criaram em 2012 a Festa Literária das Periferias (Flupp), inicialmente voltada para os morros que circundam a cidade do Rio de Janeiro e que hoje estende-se Baixada Fluminense afora. Por meio de um convênio com o Festival Literário Internacional de Paraty (Flip), Salles e Ludemir conseguiram atrair o interesse de estrelas da literatura internacional, possibilitando inusitados e férteis encontros. A partir da experiência dessas reflexões, os concursos literários que promovem já revelaram mais de 60 novos autores das periferias, incluindo o já reconhecido Jessé Andarilho. Jessé começou lendo um livro de Julio Ludemir, fundou uma associação de artistas em Antares, zona oeste da cidade, e, depois de ter um conto premiado pela Flupp, publicou no ano passado um romance, Fiel, sucesso de vendas e de crítica.
Iniciativas como essas hoje existem várias no Brasil, conduzidas por jovens visionários com menos de 30 anos. Gente em São Paulo como Bruno Souza de Araújo e Sidinéia Aparecida Chagas, responsáveis pela Biblioteca Caminhos da Leitura, que funciona em um cemitério, em Parelheiros, extremo sul da cidade; ou Isaac Souza Farias, Ketlin Cristina da Silva Santos e Donizete Almeida Maceo, que além de uma biblioteca, comandam uma tevê comunitária no Jardim Ângela; ou Hugo Carneiro, do bairro dos Pimentas, em Guarulhos, que com o projeto De Opala na Quebrada busca oferecer uma mídia alternativa às populações das periferias. Gente no Rio de Janeiro, como Octávio Júnior, autor de O livreiro do Alemão, onde conta sua saga para oferecer literatura às crianças do Complexo do Alemão; ou Raphael Ruvenal, que organiza o sarau Austin, não é o Texas, em Austin, na Baixada Fluminense; ou Felipe Eugênio, com seu movimento Favelofagia, que oferece oficinas de criação literária à comunidade de Manguinhos. Estou farto, confesso, das mentiras, da desfaçatez, da soberba da classe dirigente brasileira. Não confio mais nessas pessoas e nem me interesso por elas. Confio é nessa gente comprometida em mudar o mundo, que almeja não o reconhecimento mesquinho e vaidoso, mas afetar verdadeiramente o outro. É isso que me mantém vivo.
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