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Racismo
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Um milionário se diverte

Apesar dos absurdos racistas de Donald Trump, Estados Unidos são a melhor prova de que uma sociedade multirracial, multicultural e multirreligiosa pode prosperar

Mario Vargas Llosa
Fernando Vicente

Entre os milionários, como entre demais seres comuns, há de tudo: gente de grande talento e trabalho esforçado, que fez fortuna prestando uma grande contribuição à humanidade, como Bill Gates e Warren Buffett, e que, além disso, destinam boa parte da sua imensa fortuna a obras beneficentes e sociais, ou imbecis racistas como o senhor Donald Trump, ridículo personagem que não sabe o que fazer com seu tempo e seus milhões e se diverte nos últimos dias como aspirante presidencial republicano insultando a comunidade hispânica dos Estados Unidos – mais de 50 milhões de pessoas que, segundo ele, são uma chusma infecta de ladrões e estupradores.

Os disparates de um palhaço com dinheiro não teriam maior importância se as estupideces que Trump diz a torto e a direito na sua campanha política – entre elas figuram os insultos ao senador McCain, que lutou no Vietnã, foi torturado e passou anos em um campo de concentração do Viet Cong – não tivessem tocado um nervo do eleitorado norte-americano e o catapultado ao primeiro lugar entre os pré-candidatos do Partido Republicano. Pelo visto, entre estes só Jeb Bush, que é casado com uma mexicana, se atreveu a criticá-lo; outros olharam para o outro lado, e pelo menos um deles, o senador Ted Cruz (do Texas), apoiou suas diatribes.

Mas, felizmente, a resposta da sociedade civil dos Estados Unidos às obscenidades de Donald Trump foi contundente. Romperam com ele várias emissoras de televisão, como Univision e Televisa, as lojas Macy’s, o empresário Carlos Slim, muitas publicações e um grande número de artistas de cinema, cantores, escritores e inclusive o chef espanhol José Andrés, muito conhecido nos Estados Unidos, que abriria um de seus restaurantes em um hotel de Trump, mas se negou a fazê-lo depois das declarações racistas deste.

É bom ou ruim que o tema racial, até agora evitado nas campanhas políticas norte-americanas, venha à luz e inclusive se torne protagonista da próxima eleição presidencial? Há quem considera que, apesar das sujas razões que empurraram Donald Trump a servir-se dele – vaidade e soberba –, não é mau que o assunto se discuta abertamente, em vez de estar supurando na sombra, sem que ninguém o contradiga e refute as falsas estatísticas sobre as quais o racismo anti-hispânico pretende se apoiar. Talvez tenham razão. As afirmações de Trump, por exemplo, permitiram que diferentes agências e institutos de pesquisa dos Estados Unidos demonstrassem que é absolutamente falso que a imigração mexicana venha crescendo sistematicamente. Pelo contrário, o próprio Departamento do Censo (segundo um artigo de Andrés Oppenheimer) acaba de divulgar que na última década o fluxo migratório procedente do México caiu de 400.000 para 125.000 no ano passado. E que a tendência continua sendo decrescente.

O problema é que o racismo nunca é racional, jamais está sustentado por dados objetivos, e sim por preconceitos, suspeitas e medos inveterados em relação ao “outro”, que é diferente, tem outra cor de pele, fala outra língua, adora outros deuses e pratica costumes diferentes. Por isso é tão difícil derrotá-lo com ideias, apelando à sensatez. Todas as sociedades, sem exceção, respiram em seu seio esses sentimentos turvos, contra os quais a cultura é amiúde ineficaz e, às vezes, impotente. Ela os reduz, certamente, e frequentemente os sepulta no inconsciente coletivo. Mas nunca chegam a desaparecer totalmente, e, sobretudo nos momentos de confusão e de crise, atiçados por demagogos políticos ou fanáticos religiosos, costumam aflorar à superfície e produzir os bodes expiatórios nos quais grandes setores, às vezes inclusive a maioria da população, se exime das suas responsabilidades e descarrega toda a culpa dos seus males “no “judeu”, “no árabe”, “no negro” ou “no mexicano”. Remover essas águas imundas dos baixos fundos irracionais é extremamente perigoso, pois o racismo é sempre fonte de violências atrozes e pode chegar a destruir a convivência pacífica e socavar profundamente os direitos humanos e a liberdade.

É muito provável que, apesar da incultura que o senhor Donald Trump ostenta em tudo o que diz e faz – começando por seus horríveis e ostentosos arranha-céus –, ele intua que seus insultos aos americanos de origem latina ou hispânica são absolutamente infundados, e os perpetre sabendo do dano que isso pode causar a um país que, diga-se de passagem, foi e continua sendo um país de imigrantes, ou seja, de maneira frívola e irresponsável. Saber ganhar dinheiro, assim como ser um ás no xadrez ou chutando uma bola, não significa nada além de uma habilidade muito específica para uma determinada tarefa. Pode-se ser milionário sendo – para todo o resto – um parvo irrecuperável e um inculto pertinaz, e tudo parece indicar que o senhor Trump pertence a essa variante lastimável da espécie.

Mas seria também muito injusto concluir, como fazem alguns devido aos destemperos retóricos do magnata imobiliário, que o racismo e demais preconceitos discriminatórios e sectários são a essência do capitalismo, seu produto mais refinado e inevitável. Não é só que não seja assim. Os Estados Unidos são a melhor prova de que uma sociedade multirracial, multicultural e multirreligiosa pode existir, se desenvolver e progredir a um ritmo muito notável, criando oportunidades que atraem às suas costas gente de todo o planeta. Os Estados Unidos são o maior país do nosso tempo graças a essa miríade de pobres pessoas que, desesperadas por não encontrarem estímulos nem oportunidades em seus próprios países, foram ali para se escangalhar, trabalhando sem trégua e, ao mesmo tempo em que lavravam um futuro, construíram um grande país, a primeira potência multicultural da história moderna.

Assim como os irlandeses, escandinavos, alemães, franceses, espanhóis, italianos, japoneses, indianos, judeus e árabes, os hispânicos contribuíram de maneira muito efetiva para fazer dos Estados Unidos o que são. Se em qualquer país, hoje, parece uma sandice falar de sociedades pulquérrimas, não misturadas, esse é ainda mais o caso dos Estados Unidos, onde, devido à flexibilidade do seu sistema que concede oportunidades a todos que quiserem e souberem trabalhar, a sociedade foi se renovando sem trégua, assimilando e integrando gente procedente dos quatro pontos cardeais. Neste sentido, os Estados Unidos são a sociedade de ponta do nosso tempo, o exemplo que cedo ou tarde deverão seguir – abrindo suas fronteiras a todos – os países que quiserem chegar a ser (ou continuar sendo) modernos, num mundo marcado pela globalização. A existência de um Donald Trump em seu seio não deve nos deixar esquecer essa estimulante verdade.

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