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Coluna
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O Brasil exterminador do futuro

Se o Brasil fosse uma pessoa e chegasse ao A.A., diria: Eu, Brasil, viciado em extermínio de jovens, sobretudo jovens da periferia, “culpados” ou inocentes, confesso...

Interno da Fundação CASA, em São Paulo.
Interno da Fundação CASA, em São Paulo.Lilo Clareto

Se o Brasil fosse uma pessoa e chegasse a um clube dos viciados em alguma coisa, tipo um A.A., Alcoólicos Anônimos, diria, qual um Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados: Eu, Brasil, viciado em extermínio de jovens, sobretudo jovens da periferia, “culpados” ou inocentes, confesso...

E o Brasil começava a se curar de alguma forma, como a eficientíssima entidade nascida na América do Norte para salvar os alcoólatras.

Nessa abertura de cortina, copio meu irmão Kurt Vonnegut, no seu artigo jornalístico mais genial -disponível aqui somente nos sebos, em uma publicação da grande e inesquecível editora Scritta, sob o título O Perigo da Hora, o século XX nas páginas do The Nation, em tradução de Daniel Piza.

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No seu texto, o velho Vonnegut mostra como os EUA são viciados em guerras e propõe a cura em uma espécie de A.A. dos bélicos costumes de fazer chover bombas sobre o mundo.

Vale para o Brasil, cuja grande maioria, segundo as pesquisas, acredita que matando ou prendendo a juventude mais lascada de vida vai resolver o problema da violência. Viciados em extermínio como ideia de solução para os seus dramas reais ou sob o signo de comungar com pesadelos isolados dos seus iguais.

Eu, Brasil que só vejo o meu lado, confesso, só eliminando mesmo antes que cresçam... Antes que morram de bala antes dos trinta, inevitavelmente. Olha aí, meu guri, como na lírica social civilizatória do xará Buarque.

Eu, Brasil, desprezo quem me amedronta. Eliminemos ao primeiro sinal, ao primeiro vidro fechado no semáforo inconsciente do olho. Subo o vidro, logo existo no fumê do isolamento que mereço.

Tem que matar, mesmo, não tem jeito, como me diz aqui e agora o taxista me levando de Congonhas para o rés do chão desta minha cronicazinha barata. Onde parar, escrevo, aqui em um tour por São Paulo, o amor das Perdizes, o fragmento do discurso amoroso lá na Balsa, centrão nervoso, onde fiz mais uma maluquice do projeto Trovadores do Miocárdio, com os felas Fausto Fawcett, Mario Bortolotto, Rodrigo Carneiro, Junio Barreto...

Pena que o amor dos passionais MC's, minha eterna razão de existir, não interesse. Só interessa, em SP ou em qualquer outra metrópole, contratar pés-de-pato, como os assassinos em série são conhecidos, para eliminar os meninos, anjos do arrabalde.

Eu, Brasil, viciado em matar antes dos 15, confesso, estou maluco para matar com gosto aos 16... Matar com autorização de vocês todos, eliminar o mal pela raiz, chega de ser jovem!

A minha ideia de imprensa é uma ideia civilizatória, o resto é caô supostamente imparcial, vai vendo...

Ai sim, matarei dentro da lei, com sangue no olho, longe dessa gente escrota dos Direitos Humanos.

Matarei à primeira suspeita, estarei liberado, qual um caubói, para mandar bala nessa mestiçagem.

Sangue, sangue, sangue, como na música Jornal da Morte, composição do gênio Roberto Silva, voz de morro, também interpretada pela Nação Zumbi, a maior banda do Brasil pré e pós Chico Science.

Eu, Brasil, confesso: datenizemos todos ao menor sinal desses monstros juvenis perturbar nossas vidas. Corta pra mim que eu disparo a camêra de gás mortal contra essa gentalha. Corta pra mim que eu resolvo, no meu papo furado em busca de mais violência, digo, Ibope, digo, dinheiro manchando de sangue ao final do mês, corta pro Marcelo Rezende.

Se o Brasil fosse uma pessoa, meu amado Kurt Vonnegut, chegaria ao clube dos F.d.P. Anônimos e diria, na voz do chupa-cabra Eduardo Cunha: Eu, Brasil dos inimputáveis brancos da classe média para cima, confesso: precisamos eliminar todo e qualquer perigo quem vem da ponte da zona sul pra cá, como na letra dos Racionais MC's, porra!

Eu Brasil, confesso, toquemos o terror, incentivemos a PM a seguir no seu serviço sujo contra os meninos, eu Brasil escroto e da segregação aposto muito nisso.

Eu, Brasil, desprezo quem me amedronta. Eliminemos ao primeiro sinal, ao primeiro vidro fechado no semáforo inconsciente do olho. Subo o vidro, logo existo no fumê do isolamento que mereço

Se o Brasil que sai no jornal fosse uma pessoa, estaríamos entregues, fritos, lascados...

Mas tem outra ideia de Brasil na vida, como os jovens do movimento surgido na Baixada Fluminense, falo do Amanhecer contra a Redução..., digai, menino Jéfferson Barbosa, chapa, que responsa, estamos juntos. Desde Gutenberg, querido, a minha ideia de imprensa é uma ideia civilizatória, o resto é caô supostamente imparcial, vai vendo...

Menino Jéfferson, precisamos acreditar no que tu vês no teu dia-a-dia na Baixada...

Lá em Brasília a burguesia branca e muito mal-esclarecida quer sangue –confia a tal burguesia que nunca um menino deles cairá no precipício.

Menino Jéfferson, se o Brasil fosse uma pessoa e chegasse num clube qualquer de viciados em violência –sobretudo contra pretos e pobres– , vixe, teria vergonha e diria, só por hoje, piedade , senhor. Só por hoje.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Modos de macho & modinhas de fêmea” (ed. Record), entre outros livros.

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