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DEUSES E MONSTROS
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

À espera do amigo

A ordem se inverteu e grandes filmes são transformados em séries de televisão. Mas os capítulos de 'Fargo', inspirados no filme dos irmãos Coen, não decepcionam

Carlos Boyero
O ator norte-americano Billy Bob Thornton, na série 'Fargo'.
O ator norte-americano Billy Bob Thornton, na série 'Fargo'.

Houve um tempo em que as séries de televisão ofereciam atrativos suficientes para que o cinema, essa forma de arte supostamente superior, descobrisse que podia fazer negócio condensando num par de horas o que outros haviam contado para a tela pequena durante anos. Como o doutor Richard Kimble, esse eterno fugitivo à caça do Homem de um Braço Só, assassino de sua mulher, ou a sofisticada CIA resolvendo missões impossíveis, ou o esverdeado e incrível Hulk, ou a muito perturbadora Além da Imaginação, ou as histórias enigmáticas que acontecem nessa cidade chamada Twin Peaks, que seu criador, David Lynch, converteu num dos filmes mais imbecis e absurdos da história do cinema, intitulado Os Últimos Dias de Laura Palmer, ou as desinibidas yuppies que tentavam transar muito e bem em Nova York, ou os marcianos (ou terráqueos no espaço, sei lá) de Jornada nas Estrelas, ou as beldades detetives que exerciam o papel de panteras de Charlie, e outras que minha memória esclerosada esquece.

Mas o fato é que os tempos estejam mudando (“não critique o que não pode compreender, seus filhos e filhas estão além de seu domínio, porque os tempos estão mudando”, afirmava Dylan, mas maldita seja a graça que me provoca sua velha profecia numa era em que você só funciona como alguém de sua época se está conectado a algum dispositivo, em sua casa ou na rua, em seu trabalho ou em sua intimidade), que os antigos estão ficando implacavelmente irreconhecíveis, sem que haja possibilidade de sobrevivência mental para os anciãos que não podemos, nem nos agrada, nem queremos ficar sem cinemas, sem livrarias de papel, sem lojas de discos. E descobrimos, entre outras insignificâncias, que a ordem se inverteu, que o mercado mais poderoso da imagem aproveita filmes com aura e prestígio para inspirar séries, e para desenvolver até o infinito, se tiver apoio da audiência, histórias que no cinema têm começo, meio e fim.

Tenho calafrios diante da possibilidade de que meus filmes mais amados, que se chamam Se Meu Apartamento Falasse e Desafio à Corrupção – que contam, no primeiro caso, como um sapo (cujo nome é C. C. Baxter) que se sentia um Robinson Crusoé até que viu os rastros de uma maravilhosa e infeliz ascensorista, transforma-se, graças a ela e à dignidade dela, num príncipe; e, no segundo, como Eddie Felson, aquele artista do bilhar alcoolizado, pergunta com ativo desespero a seu explorador capitalista: “Diga-me, Bert, como posso perder? Não consigo mais perder” –, sejam pratos tentadores aos produtores de séries televisivas que decidam estender por sete temporadas a vida dos personagens que Billy Wilder e Robert Rossen tornaram imortais na grande tela.

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Por isso vejo com atraso infinito, quando aparecem nesse mercado moribundo, gerido por burocratas idiotas e nada imaginativos, que cobram preços exorbitantes depois que essas séries são pirateadas até não poder mais e os canais de TV as exibem à exaustão, essas séries em DVD e blu-ray que só os loucos como eu compram, sabendo há um ano ou mais, graças a múltiplas opiniões alheias, sobre a qualidade que contêm. Se no romance O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, esperavam um inimigo que nunca chegava, eu, ao contrário, pergunto-me sem parar, embora inutilmente, quando vão me fazer feliz com a chegada do amigo, com essas séries que todo mundo já viu e que provavelmente tornarão minha solidão mais suportável.

E finalmente Fargo começa a ser vendido. Mas só em DVD. Porque foi uma ideia de merda que saiu do privilegiado cérebro de seus vendedores, pela “assassinável” ausência de um critério racional sobre os formatos que sua ínfima clientela espera. Escutei que os irmãos Coen, autores daquele filme tão esquisito, sarcástico, tragicômico e sublime chamado Fargo (eles sempre imprimem seu fascinante e exclusivo toque, e às vezes brilham muito mais quando não se limitam a gracinhas para o prazer exclusivo dos moderninhos, quando o que estão contando e o estilo para fazê-lo alcançam a condição de obra-prima; estou pensando em Ajuste Final, O Grande Lebowski, Fargo e Bravura Indômita), afirmaram que a série é melhor que o filme. Opinião arriscada e generosa, se bem que seus direitos autorais e sua função de produtores executivos da série compensem todo tipo de elogios porque ajudam engordar sua conta corrente, sem responsabilidade sobre a duradoura criatura que criaram, desenvolveram e fecharam com o excepcional filme chamado Fargo.

E vejo os primeiros capítulos com desconfiança. Foram criados por Noah Hawley, cujos méritos artísticos desconheço. Mas comprovo que ele mamou até o fundo a essência, os personagens, o ambiente, a atmosfera e o ritmo que existiam no produto original. Ou seja, você vai sentir o frio extremo, a imbecilidade tosca de um mundo extremamente primitivo embora pertença à grande América; os eventos extraordinários e selvagens num universo em que aparentemente nunca ocorre nada importante; a esperteza, o profissionalismo e a bondade de uma policial gorda e com olhar incisivo que já não espera nada da vida, mas que se preocupa em fazer bem o seu trabalho; o oposto inquietante de um homem submisso e humilhado que desde pequeno foi como o bobo da turma; a aparição dos assassinos profissionais (um deles mudo) e o protagonismo do mal levado ao virtuosismo, encarnado por esse ator tão camaleônico como voraz chamado Billy Bob Thornton, sim, esse senhor tão intrigante cujo nome a belíssima Angelina Jolie gravou em suas partes íntimas.

E é uma série tensa, com cheiro e sabor, tão bem escrita como dirigida, que integrou sem empostação nem plágio barato as melhores virtudes do filme. E quando acaba a primeira temporada, ambientada em Fargo e Minnesota (sim, Duluth, aquela cidade gelada onde nunca acontecia nada que gerou um tal Robert Zimmerman – sujeito genial que dela fugiu ainda muito jovem para se transformar em Bob Dylan), dá muita vontade de que chegue logo a segunda temporada. Sentiremos saudade de Billy Bob Thornton. Mas, certamente, entre essas pessoas tão primitivas e grotescas, continuam ocorrendo histórias arrepiantes.

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