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Morre David Carr, o jornalista que investigou a si próprio

Colunista do ‘The New York Times’ faleceu aos 58 anos, trabalhando na redação

Marc Bassets
O jornalista David Carr, em 2008.
O jornalista David Carr, em 2008.Stephen Chernin (AP)

David Carr tinha a voz rouca de um pirata, o andar desengonçado de um Quixote e o olhar inquisitivo de Sherlock Holmes.

Parecia um repórter saído de outra era, de um filme como A Primeira Página, mas dissecou como poucos as últimas revoluções nos veículos de comunicação. Aplicou o rigor jornalístico tanto em suas colunas nas páginas de Economia do The New York Times – textos com pitadas de opinião e toneladas de informação – como no livro em que, com os métodos da reportagem clássica, investigou as épocas mais obscuras de sua biografia mais íntima.

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A Noite do Revólver (The Night of The Gun, em inglês) é um livro particular. Nele, Carr tenta reconstruir parte de sua vida, anos que em sua memória ficaram apagados pelas drogas e o álcool. Como suas recordações são falhas e, como bom repórter, não confia nem em sua própria versão, decidiu investigar seu passado. Investiga a si próprio como se perseguisse o furo de Watergate.

Entrevista namoradas e traficantes. Colegas nas noites de farra e chefes que o despediram. Consulta arquivos e hemerotecas.

O título do livro, publicado em 2008, vem de uma noite na qual acredita lembrar que um amigo lhe apontou um revólver. Ao entrevistá-lo, 20 anos depois, o amigo lhe explica que jamais teve uma arma. “Essa é uma história”, escreve, “sobre quem tinha o revólver”.

Carr utilizou a técnica do fact-checking – a comprovação de dados de um texto jornalístico – para examinar sua própria vida. Acreditava que não existia melhor método do que a reportagem para chegar à verdade e melhorar as histórias. Sempre, até o último dia de sua vida, quando entrevistou a documentarista Laura Poitras e o jornalista Glenn Greenwald sobre o filme Citizenfour, buscou quem tinha o revólver.

Morreu de forma inesperada na noite de quinta-feira, na redação do The New York Times, o jornal que amava com paixão juvenil – nunca deixou de maravilhar-se pela sorte de trabalhar no Vaticano do jornalismo de qualidade – e que o transformou em uma referência para seus colegas de profissão e para as pessoas interessadas nos veículos de comunicação. Tinha 58 anos.

Carr utilizou a técnica do fact-checking — a comprovação de dados de um texto jornalístico — para examinar sua própria vida

Seus artigos, que eram publicados toda segunda-feira, eram o que nos Estados Unidos são chamadas de colunas jornalísticas. Rara era a coluna que não continha uma ou várias declarações tiradas de entrevistas. Sua honestidade era desarmante.

Em uma coluna recente confessou que alguns anos atrás errou ao menosprezar a publicação alternativa Vice. Em outra, sobre as acusações de estupro contra o comediante Bill Cosby, criticou os jornalistas que em anos anteriores não perguntaram ao ator sobre as suspeitas que já circulavam. Enumerou uma série de repórteres que, mesmo “estando a par”, não disseram nada. Depois acrescentou: “E me incluo entre os que estavam a par.”.

Carr se transformou em uma figura pública graças a Page One, um documentário de 2011 sobre o The New York Times. O documentário explicou a crise da imprensa escrita e a complexa transição ao mundo digital, e o fez através dos jornalistas que cobriam os veículos de comunicação no Times.

Diante das câmeras, cultivava a imagem de repórter experiente e desbocado, uma espécie de tio malvado dos mais jovens que apareciam na Dama Cinzenta (apelido pelo qual o Times é conhecido, nos EUA). Ficou claro que Carr, formado na imprensa local de sua cidade, Minneapolis, e de Washington D.C., era mais do que um jornalista especializado nos veículos de comunicação. Falar da imprensa era para ele uma forma de falar do mundo, da vida.

Sua penúltima coluna, publicada na segunda-feira, abordava o caso de Brian Williams, o apresentador principal da rede de televisão NBC, caído em desgraça ao descobrir-se que era falsa a história que contou durante anos, sobre como o helicóptero que viajava em 2003 foi atingido por fogo inimigo. Na realidade, viajava em outro helicóptero.

Carr, que sabia alguma coisa sobre os enganos da memória, entrevistou 70 pessoas para reconstruir seu próprio passado em A Noite do Revólver. Williams abrilhantou, talvez de boa-fé, suas próprias lembranças, e quando a verdade veio à tona os inquisidores da imprensa e das televisões norte-americanas apressaram-se em exigir sua demissão do telejornal da NBC.

Na terça-feira, a rede de televisão o suspendeu durante meio ano. Antes, Carr, que em suas colunas exibia tanto críticas como empatia e piedade, foi um dos poucos que discordou. “Não sei se o Sr. Williams deve perder seu emprego”, escreveu. “Não acredito que deva perdê-lo.”.

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