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Madonna: eterno regresso à provocação

Aos 56 anos, a rainha do pop oferece uma nova imagem de si mesma com fotos nas quais mostra os seios. Depois de três décadas de carreira, pretende continuar com sua revolução sexual

Xavi Sancho
Madonna para a coleção primavera/verão 2015 de Versace.
Madonna para a coleção primavera/verão 2015 de Versace.Versace

O que resta por fazer a uma mulher que vem provocando desde o começo dos anos oitenta do século passado? Como uma senhora que saiu na tela derramando cera sobre o membro viril de Willem Dafoe pode questionar o status quo do mundo pop no ano de 2014, uma senhora que produziu um documentário sobre pessoas que deitavam em sua cama e um livro intitulado Sex, uma senhora que escreveu uma canção sobre o aborto em 1986 e que colocou um Jesus Cristo negro pelo qual se apaixonava em um videoclipe? Pois com algo tão simples como aparecer mostrando os seios no que parece ser o ano internacional do bumbum.

Enquanto uma pequena diva como Jennifer Lopez vai à ginástica e tenta recuperar seu posto no trono mundial do melhor bumbum, uma grande diva, como Madonna, transforma o paradigma morfológico e exige sua centralidade, algo que já conseguiu das mãos do designer Jean Paul Gaultier há mais de uma década com os sutiãs em forma de cone, cuja reformulação recentemente tem dado tantas alegrias na mídia a outras estrelas como Lady Gaga ou Katy Perry.

Talvez possa parecer um movimento quase infantil, sobretudo agora quando parece que nada mais consegue chocar e, se consegue, o escândalo dura o que o sistema demora para assimilá-lo, engarrafá-lo e vendê-lo. Aí estão essas famosas imagens de Madonna, que já deram várias voltas ao mundo, nas quais, aos seus 56 anos, sai mostrando seus peitos para a revista Interview, mas também as fotos que vazaram e nas quais a diva aparece sem passar pelo filtro e pintura do Photoshop. Para a surpresa de muitos, a autora de Ray of Light é uma mulher de 56 anos que quase aparenta a idade que tem, não esse ser sobrenatural que ela e muitos de seus fãs têm carregado durante mais de uma década, com o fútil e desnecessário desejo de ignorar a passagem do tempo.

Madonna para a revista Interview.
Madonna para a revista Interview.Versace

Para Chris Márquez, presidente do fã-clube de Madonna desde 1987 (o Photoshop foi lançado em 1990), estas fotos “colocam em evidência o edadismo [a discriminação de uma pessoa por sua idade], contra o qual Madonna sempre lutou. As mulheres adultas não sofrem apenas o sexismo, mas também o edadismo”, diz Márquez, que também é diretor da dareStar, revista em castelhano dedicada à diva e fundador do site Divinamadonna. “A partir de certa idade, uma mulher não tem permissão de ser aventureira, de ser sexual. Isso é espantoso. Muita gente quando vê uma foto de uma mulher de mais de 50 mostrando os peitos diz: 'Oh, isso é patético! Pensa que tem 20 anos, tem que para de agir assim’. Madonna com essas fotos só está dizendo: Quem se importa? O que vai acontecer se eu fizer? Quero dizer: há alguma regra? Supõe-se que deveríamos morrer aos 40? Esta é uma das mil razões pelas quais a amamos. Leva suas convicções até o final.”

Falar de convenções quando se trata de um produto da indústria pop pode soar exagerado, mas agora, como na frase em que promovia a continuação do filme Os Mercenários, parece que Madonna ressurgiu, e desta vez é pessoal.

A Ciccone vendeu mais de 300 milhões de discos desde que começou sua carreira. É a quarta artista que mais vendeu discos na história e a mulher que comercializou o maior número de álbuns nos Estados Unidos (65,5 milhões). Nos últimos 25 anos, 9,7 milhões de pessoas de todo tipo de orientação sexual, classe social e preocupações foram aos seus shows. Sua última turnê arrecadou mais de 300 milhões de dólares (cerca de 776 milhões de reais), número que ajudou a colocá-la no posto de cantora mais rica do planeta em 2013, segundo a Forbes, com renda de 125 milhões de dólares (323 milhões de reais).

Madonna, em sua viagem ao Malawi em novembro passado.
Madonna, em sua viagem ao Malawi em novembro passado.AFP

Mas Madonna é voraz. Vai lançar mais um disco e é a nova imagem de Versace para a próxima temporada primavera/verão. Nas fotos divulgadas esta semana aparece retocada pelo Photoshop, mas consegue que esse recurso, em vez de se transformar em um truque estético para parecer mais jovem e exuberante, se apresente como uma forma de jogar com a memória coletiva sobre a imagem que se tem dela. Parece engenhoso. E é. Funciona? Parece que sim. Por isso Madonna retorna como já o fez mil vezes, e sempre conseguiu voltar como se nunca tivesse ido.

“Ela é muito mais do que uma cantora. Acredito que isso, além de falar dela como plataforma multimídia, produtiva e digital muito bem-sucedida e inteligente, fala também de um público que compreende que alguma coisa acontece com Madonna: vivemos uma época de transformação e convergência e ela é um grande exponente de tudo isso”, afirma Gabriela Pedranti, coordenadora do curso BA Honours Fashion Marketing and Communication do IED Barcelona. “Talvez nos vejamos refletidos em suas imagens dos últimos 30 anos. Há pouco tempo escutei uma frase divertida, que representa isso: ‘Se o mundo explodisse mas os Simpson ficassem, os extraterrestres entenderiam a história ocidental dos últimos 30 anos’. Acredito que entenderiam muito esses anos se também ficassem registros das diferentes épocas de Madonna”.

E qual será a imagem dessa nova época da diva? Os lançamentos dessa mulher não são meros acontecimentos musicais e comerciais, mas exercícios que marcaram o caminho a seguir e, mais tarde, trabalhos de certificação do estado de coisas. Quer dizer, um tipo de debate sobre o estado da nação pop.

Madonna na capa da Interview.
Madonna na capa da Interview.Interview

Com Confessions on a Dance Floor também iniciou um revival, o da música disco. Quando ainda não se sabia que os revivals iam definir a primeira década do século XXI. Por enquanto, revelou que está trabalhando com o produtor e DJ Avicii, que parece estar encarregado de inseri-la na cena da EDM —esse tipo de música eletrônica que se define mais por garrafas de champanhe que são consumidas nos clubes do que por suas contribuições para o futuro da música—. Também trabalha com Diplo, o homem que com mais talento e ousadia mesclou as raízes africanas e caribenhas até transportá-las para as pistas de dança, para as listas dos melhores do ano da mídia ocidental, seja produzindo os discos MIA ou à frente do Major Lazer. “Normalmente não sinto a necessidade de escrever hits, mas com um artista deste calibre você se vê obrigado a ir além dos próprios limites, de se superar”, disse Diplo, atual companheiro de Katy Perry.

“Ela simplesmente é a diva. É a rainha do pop. Foi a primeira. Todas bebem de suas fontes e a adoram. A maioria das cantoras atuais não esconde sua admiração. Não há nenhuma aluna que se preze que não tenha rendido homenagem à professora”, comenta Márquez, presidente do fã-clube. E, em suas palavras, é possível identificar algo fascinante: o pop nasceu como uma celebração do agora, se desenvolveu em uma época na qual aos 25 anos já era possível decifrar seus códigos, que evoluíam de forma supersônica com o único objetivo de recrutar adolescentes com a mesma velocidade com a que se descartavam aqueles que pareciam mais velhos.

Ao contrário do rock, onde a idade impõe sua autenticidade e seu peso, e com isso espera se perpetuar, o pop é um pouco hoje e bastante o amanhã. Não precisa lutar contra o tempo, porque o tempo é seu. Por isso que em um esquema como este nenhuma das estrelas que poderiam competir com Madonna em 2014 ou questionar a diva, com o afã de se apropriar do momento, se equivocam. Todos a amam. Mas ela se ama mais.

As eras da diva

1983-86. Lingerie por cima da roupa nas ruas, som britânico importado diretamente, imagem sexual, mas levando em conta os valores morais da época. Tinha que agradar. Resultado: uma mudança do paradigma total e absoluto na idiossincrasia do pop. De fato, talvez a mudança mais brutal na história do estilo musical desde o surgimento dos Beatles.

1989-1994. Imagens religiosas, sexo explícito e dominação planetária. Sem Madonna talvez Scorsese jamais teria ousado dirigir A Última Tentação de Cristo. De tentar agradar a garotada, a diva passa a tentar incomodar todo mundo. Consegue. Começa a provocação em uma era na qual, nesses termos, ainda faltava muito o que fazer. O único problema é que ela é tão voraz que come tudo. Depois de Like a Virgin, Erotic, e Bedtime Stories, qualquer tentativa de vender sexo no pop pareceu vazia e sem originalidade.

1998-2000. Tentativa triunfante de maturidade. Madonna veste jeans, corta um pouco o cabelo, maquiagem discreta e dança sem necessidade de coreografia. Depois, Music, hit global, estética cowboy, luzes e primeiras sombras.

2005. A pista de dança. A diva passa a precisar de mais classes de spinning do pensava. Compra uma bola de espelhos, calças coloridas e olha para trás, até chegar aos anos setenta. O resultado é um sucesso sem precedentes. Tudo volta a girar ao seu redor.

2008-2012. Acabam os truques. Está presa em um paradigma novo que não lhe deixa espaço. Não pode olhar para trás, não pode olhar para frente, porque a verdade já não é algo que pertence a ela, mas aos mais jovens. Paga o preço de não ter seguido o caminho de Ray of Light. Então, se transforma nessa diva que o que faz melhor é a lista de compras: selecionar o melhor da cena atual e recrutá-lo para ganhar um verniz de modernidade. Se sai mais ou menos bem. Não ganha nada novo, mas tampouco perde muito. Musicalmente, pouco relevante, embora metafisicamente se confirme como invencível.

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