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CRÍTICA
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

‘A pele de Vênus’: o infinito jogo de espelhos de Polanski

Dois personagens e quantas camadas, uma após a outra, até moldar algo difícil de igualar

Javier Ocaña
Mathieu Amalric e Emmanuelle Seigner, no filme.
Mathieu Amalric e Emmanuelle Seigner, no filme.

Desde o primeiro minuto, desde o primeiro e bem veemente travelling, desde a primeira nota musical, Roman Polanski e seu compositor, Alexandre Desplat, remetem ao tom de grande teatro de marionetes de Jogo Mortal (filme de 1972), ao seu modelo de representação, a seu combate, ao teatro da vida. E, no entanto, A Pele de Vênus, adaptação cinematográfica feita pelo dramaturgo David Ives de uma peça que ele mesmo escreveu, não pode ser mais puramente Polanski: em seu tom e em seu caráter obsessivo; em seus diferentes planos de ataque e em sua vertente opressiva; em sua fascinante intelectualidade.

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Dois únicos personagens: um autor e diretor de teatro, e uma mulher que aspira ao papel principal da obra, em uma audição. Entretanto, quantas camadas, como uma série de bonecas russas, uma após a outra, até moldar algo difícil de igualar: um filme de ficção que adapta uma obra de teatro (a de Ives), que se inspira em um romance, chamado A Vênus das Peles, escrito pelo escritor austríaco, do século XIX, Leopold von Sacher-Masoch, primo-irmão mental e literário do Marquês de Sade, e origem direta da palavra masoquismo. Se a isso acrescentarmos que a peça relata um teste de elenco e que, na realidade, talvez não estejamos mais que diante de um personagem dual que, em seu desespero e se olhando em um metafórico espelho, inventa sua própria Vênus para dialogar consigo mesmo e acabar fundindo personagem e autoria, quase à maneira do Unamuno de Névoa, até convergir em uma auto-inculpação como artista e como pessoa, chegaremos quase à extenuação quanto a níveis de representação. Parece difícil, mas não é (tanto).

Como também se torna complicado encontrar uma obra, ou levá-la a tal extremo, na qual haja tantos paralelismos com o cinema do mestre polonês. Tantos que até o próprio Polanski, em duas decisões que beiram o doentio, colocou sua mulher, Emmanuelle Seigner, como protagonista, e buscou um ator, Mathieu Amalric, de grande semelhança física com ele, ao qual penteou no seu estilo quando jovem, e a quem acaba travestindo em um momento que remete de modo irremissível ao próprio diretor em seu filme O Inquilino, do qual foi diretor e protagonista.

A PELE DE VÊNUS

Direção: Roman Polanski.

Intérpretes: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner.

Gênero: drama. França, 2013.

Duração: 96 minutos.

Por meio de uma encenação clássica, sem estridências (menos que em Deus da Carnificina, outra recente adaptação teatral), e com um leve acompanhamento de piano de Desplat, que só se torna lindamente grandiloquente no impulso de degradação final, o diretor de A Faca na Água, Repulsa ao Sexo, Lua de Fel e A Morte e a Donzela, com os quais há não poucas concomitâncias em questões de dominação, subjugação e perversão, tem tempo até para refletir sobre certo olhar atual às peças de época, às quais se aplicam códigos de conduta e moralidade contemporâneos, e sobre o exagero (ou talvez não) de elevar toda a arte a um plano social em defesa das minorias. Em suma, o infinito jogo do combate sexual e da dominação, seja na cama ou fora dela, o infinito Polanski.

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