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Sobrevivente do Carandiru: “Se a porta abrir, você vive. Se não, vou te executar”

As memórias de Sidney Sales sobre a tragédia que o Brasil não consegue superar: "Foi meu Auschwitz"

Detentos mostram pano sujo de sangue no Carandiru, em outubro de 1992.
Detentos mostram pano sujo de sangue no Carandiru, em outubro de 1992.Marlene Bergamo/Folhapress
Gil Alessi

“Vai acontecer um milagre na sua vida”, afirmou o policial calmamente enquanto engatilhava a escopeta calibre 12, apontada para a cabeça do detento Sidney Sales, então com 24 anos. “Estou com esse molho de chaves do andar todo aqui. Vou escolher uma. Se bater no cadeado, girar e a porta abrir você vive. Se não, vou te executar. Você morre aqui mesmo no corredor”. O preso fechou os olhos e começou a recitar na cabeça os salmos que conhecia. “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei...”. Antes que pudesse terminar a prece um barulho ecoou por todo o corredor do quinto andar do pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, zona norte de São Paulo. Era o som do pesado cadeado da cela 504-E se abrindo. Sales garantiu sua vida no girar de uma chave. Naquele 2 de outubro de 1992 ele se tornou um sobrevivente do episódio conhecido como Massacre do Carandiru, o maior da história do sistema prisional brasileiro: estima-se que ao menos 111 presos foram assassinados por policiais durante uma ação desastrada da tropa. Uma tragédia de erros que marcou o Brasil, que até hoje não consegue admitir ou apontar nem mesmo os autores dessa barbárie: em abril deste ano, o julgamento que havia condenado os 74 policiais que participaram daquela operação foi anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

"Foi uma carnificina aquele dia, eu comparo o que aconteceu com Auschwitz [campo de concentração nazista], Camboja [onde o Khmer Vermelho matou quase 2 milhões de pessoas nos anos de 1970] e outras tragédias que eu via só em filme ou livro”, afirma Sales em conversa com o EL PAÍS na terça-feira. Os acontecimentos que levaram a polícia a invadir o pavilhão 9, que abrigava em torno de 2.500 detentos de um total de 8.000 do presídio, começaram cerca de três horas antes.

O sobrevivente Sidney Sales.
O sobrevivente Sidney Sales.Joel Silva/Folhapress

Por volta das 15h o clima era de alegria no pátio: o placar estava praticamente definido, bem como o título de campeão do Carandiru. Sales, ponta-esquerda habilidoso mesmo jogando no terrão do pátio, estava feliz apesar de não ter marcado. O sol brilhava forte durante a tarde daquela sexta-feira, e sua equipe, chamada de time do Cascudinho, batia o rival por 2 a 1. Nos minutos finais da partida ele ainda precisou recuar e cobrir um buraco na defesa provocado pela expulsão de um zagueiro que deu uma botinada no rival e levou cartão vermelho. O juiz apitou e os jogadores em festa saíram comemorando rumo ao pavilhão 9 do presídio. Mas a alegria durou pouco.

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“Começaram a rolar uns rumores de que estava tendo uma briga no segundo andar do pavilhão entre dois presos, o Barba e o Coelho”, lembra Sales. Até então “tudo normal”, conflitos eram comuns no prédio, que abrigava réus primários e “inexperientes” em seus cinco pavimentos. Um dos envolvidos na briga ficou gravemente ferido e não foi removido pelos agentes penitenciários, o que gerou revolta na população carcerária. “Ele tinha muitos companheiros, e deixaram ele lá, sangrando no chão. Aí começou a revolta”, afirma. Rebeliões também eram comuns naquele tempo: “Eu já tinha participado de outras duas na Casa de Detenção, então sem novidade”. De acordo com Sales, um incêndio nas cozinhas precipitou a invasão do pavilhão.

À medida que a tropa ia subindo, presos dos andares inferiores começavam a chegar ao quinto andar. “Eles diziam que a polícia não estava usando balas de borracha”, afirma. Sales correu para sua cela, de número 504-E, para pegar uma carta enviada pela mãe uma semana antes. Evangélica, ela havia enviado o salmo 91 da bíblia manuscrito em um papel branco: “Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia, nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia. Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti”. “Eu desacreditei, eu não era muito religioso, mas estava tão desesperado que só pensava em pegar a carta”, diz.

No começo da invasão Sales pedia calma aos demais detentos. “Mas não tinha como. Da forma como fomos surpreendidos pela tropa, qualquer um entrava em pânico”, lembra. Pouco antes dos policiais chegarem ao quinto andar, ele e um grupo de detentos tentaram se refugiar em uma espécie de caixa d’água no telhado. Uma rajada de metralhadora fez com que mudassem de ideia: “Um helicóptero da polícia deu um rasante atirando sem dó, aí desistimos e voltamos pra dentro”, afirma.

Quando os policiais finalmente chegaram ao quinto andar, Sales e outros presos se fecharam na cela. “Tinha 10 pessoas dentro da cela, todas agachadas rezando cada um pro seu deus. Eu não fiz diferente. Me ajoelhei e comecei a orar o salmo 91”, lembra. Um policial disparou algumas balas pela portinhola de abertura da porta. Uma delas ricocheteou na parede e terminou na nuca de um dos presos. “Estevão morreu do meu lado sem dar um grito, foi morte instantânea. Começou a se formar uma poça de sangue, e aí veio o pânico”, afirma. O policial autor dos disparos perguntou quantos detentos estavam no local. Assustados, os presos se calaram. “Ele disse que ia atirar de novo se ninguém respondesse, e foi aí que eu falei que éramos em 10 lá dentro”, diz.

Dezenas de corpos estirados no chão, “alguns ainda vivos, gritando e gemendo”

O policial deu ordem para que todos se despissem e saíssem da cela. Ao sair, Sales se deparou com uma cena horrenda. Dezenas de corpos estirados no chão, “alguns ainda vivos, gritando e gemendo”. Quando estava caminhando sobre os corpos, uma voz familiar chamou seu nome: “Ney, ney!”. “Era um amigo meu. Ele havia sido baleado no rosto e estava totalmente deformado. Não tive coragem de parar para ajudar nem de olhar para ele, estava horrível, um olho havia sido arrancado”, lembra com a voz embargada.

Ao se aproximar das escadas, os policiais haviam se posicionado dos dois lados do corredor, e agrediam os detentos com cassetetes e coronhadas. O elevador do pavilhão havia sido danificado durante a rebelião pelos detentos. “Os policiais abriram as portas, e de cada 10 presos que passavam eles empurravam dois ou três no fosso. Imagina, uma queda de cinco andares... Quando vi que estavam fazendo isso mudei meu lugar na fila pra ficar mais perto da escada e escapar do vão”, conta.

O faxina empilhando corpos

Sales era um faxina, nome dado aos presos responsáveis por providenciar alimentação dos demais presos e mediar conflitos internos. “Eu acordava 5h da manhã pra pegar na portaria o café da manhã, tambores de 50 a 100 litros, e subia até o pavilhão para distribuir”, afirma. Cabia a ele e mais cerca de 200 presos que detinham o mesmo título impor a ordem entre a população carcerária. “O pessoal costuma dizer que o faxina é o voz ativa dentro do presídio. Coordenava, fazia com que as situações ficassem mais favoráveis para os presos, tinha a questão do errado se passar pelo certo e vice versa”, explica. “Éramos como que funcionário do Estado entre aspas: éramos assistentes sociais e psicólogos ao mesmo tempo também”, brinca.

“Um preso pegava os braços e outro as pernas. Carreguei uns 25 corpos. Descíamos eles dos andares e amontoávamos no pátio”

Após o massacre, coube a alguns detentos carregar os corpos das celas corredores até o pátio, onde seriam retirados em carros do Instituto Médico Legal. “Um preso pegava os braços e outro as pernas. Carreguei uns 25 corpos. Descíamos eles dos andares e amontoávamos no pátio”, lembra. Alguns ainda estavam vivos ao serem levados: “A gente tentava ignorar esses gritos dos que ainda viviam. Colocávamos presos mortos em cima deles pra ver se paravam de gemer”.

Sales ainda estava ajudando a carregar cadáveres e presos vivos, quando percebeu, no fundo de uma cela, o corpo baleado de um outro detento que estava desempenhando a mesma função. “Aí eu pensei: 'pronto, estão fazendo queima de arquivo”, diz. Ele correu para as escadas e subiu até o quarto andar. “Aí eu vi aquela poça de sangue no corredor, escorrendo pelos degraus e fiquei com medo de colocar o pé”, explica. O HIV era comum dentro do presídio, e os litros de sangue derramado pela chacina ajudaram a disseminar ainda mais a doença. “Aí eu desviei do quarto andar e subi pro quinto. Quando cheguei lá me deparei com três policiais”, diz. Foi neste momento que sua vida foi decidida no girar de uma chave, sob a mira de uma escopeta. “Aí eu entrei. O policial bateu a porta nas minhas costas e eu fiquei lá até o dia seguinte. Tinha umas 40 pessoas lá dentro.”

Encarceramento em massa e facções

Sales havia sido condenado por assalto a mão armada cometido três anos antes. “Artigo 157, roubo de carga”, conta. Preso e condenado a quatro anos de prisão, aterrissou direto no Carandiru. Antes disso nunca havia tido passagem por nenhuma penitenciária, nem pela finada Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem).

“Não tenho mais pesadelos, mas trás uma revolta lembrar disso tudo né? Quem sobreviveu fica revoltado. Desacredito do Estado até hoje”

Ao sair após o término de sua pena, Sales enfrentou a dura realidade do ex-presidiário. “Eu era negro, egresso do sistema penitenciário, sobrevivente do massacre do Carandiru, dependente químico e semianalfabeto. Na hora de fazer um currículo, na hora de procurar um emprego, apresentava antecedentes criminais e ninguém me queria”, afirma. Sem nunca ter sequer mexido em um computador, o ex-detento só encontrou portas fechadas, e voltou rapidamente ao crime. Em um acerto de contas, foi baleado na coluna se tornou paraplégico. Foi preso novamente depois. “Era terrível. Lembro de acordar algumas noites no presídio, depois de ter evacuado em mim mesmo. Era triste...”, lembra. Cumpriu mais dois anos em regime fechado, totalizando seis anos de reclusão.

Hoje, vive para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade. Sales tem três centros para acolhimento de moradores em situação de rua e dois para recuperação de usuários de drogas. Por suas instituições já passaram mais de 7.000 pessoas.

“Não tenho mais pesadelos, mas traz uma revolta lembrar disso tudo né? Quem sobreviveu fica revoltado”, diz. Para ele, a sensação é de que “não havia Justiça”. “Eu sou desacreditado do Estado até hoje”, afirma.

Sales é crítico ao modelo de encarceramento em massa vigente no Brasil. “Dos mais de 600.000 presos, 40% são provisórios, ou seja, não foram nem julgados e condenados ainda”, afirma. Ele defende que estes detentos aguardem o julgamento fora do cárcere. “E é preciso ampliar as penas alternativas, que não envolvem restrição total de liberdade”, diz. Estas medidas ajudariam a “desafogar o sistema prisional”. “A maioria dos presos por tráfico são dependentes químicos, que devem ser tratados, e foram pegos com pequenas quantidades. Eles não são aquele traficante que volta da Colômbia com cinco quilos de pó na mochila”, afirma.

Para ele, o atual modelo só fortalece as facções criminosas, porque “lá dentro estes presos primários são adorados por estes grupos e saem de lá com um bacharelado no crime”. “O sistema penitenciário está esquecido desde quando foi inventado”, diz. Sales relaciona a ausência do poder público nos presídios e a superlotação ao crescimento das facções. “O Estado não garante a proteção nem produtos básicos para os detentos. Aí os grupos criminosos usam essa brecha para se infiltrar, recrutar e se fortalecer”.

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