_
_
_
_
_
PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Macron

O nacionalismo e o populismo aproximaram a França do abismo nos últimos anos, mas hoje, caso a Frente Nacional seja derrotada, uma recuperação pode começar

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Este artigo aparecerá no mesmo 7 de maio em que os franceses estarão votando no segundo turno das eleições presidenciais. Quero crer, como dizem as pesquisas, que Emmanuel Macron derrotará Marine Le Pen e salvará a França do que teria sido uma das piores catástrofes da sua história. Porque a vitória da Frente Nacional não significaria apenas a ascensão ao poder em um grande país europeu de um movimento de origem inequivocamente fascista, mas a saída da França do euro, a morte da União Europeia no curto prazo, o ressurgimento dos nacionalismos destrutivos e, em última instância, a supremacia no velho continente da renascida Rússia imperial sob o comando de Vladimir Putin, o novo czar.

Mais informações
Eleição na França neste domingo determina o caminho da Europa
Equipe de Macron denuncia “ação de pirataria maciça” de documentos internos
Centrista Macron amplia vantagem nas pesquisas no fim da campanha na França
Os 250.000 em marcha por Macron
Campanha de Macron sofre ciberataques e especialistas atribuem a grupos russos

Apesar da previsão das pesquisas, o triunfo de Emmanuel Macron, ou, melhor dizendo, de tudo o que ele representa, é uma espécie de milagre na França dos nossos dias. Porque, não nos enganemos, a corrente universalista e libertária, a de Voltaire, a de Tocqueville, a de parte da Revolução Francesa, a dos Direitos do Homem, a de Raymond Aron, estava tremendamente debilitada pela ressurreição da outra, a tradicionalista e reacionária, a nacionalista e conservadora – da qual o Governo de Vichy foi genuíno representante, e a Frente Nacional é emblema e porta-estandarte –, que abomina a globalização, os mercados mundiais, a sociedade aberta e sem fronteiras, a grande revolução empresarial e tecnológica do nosso tempo, e que gostaria de fazer a cronologia retroceder e voltar à poderosa e imarcescível França da grandeur, uma ilusão à qual a contagiante vontade e a sedutora retórica do general De Gaulle deram vida fugaz.

A verdade é que a França não se modernizou, e o Estado continua sendo um obstáculo esmagador para o progresso, com seu intervencionismo paralisante na vida econômica, sua burocracia ancilosada, sua tributação asfixiante e o empobrecimento dos serviços sociais, em teoria extraordinariamente generosos, mas, na prática, cada vez menos eficientes pela impossibilidade crescente em que se encontra o país de financiá-los. A França recebeu uma imigração enorme, em boa medida procedente de seu desaparecido império colonial, mas não soube nem quis integrá-la, e essa é agora a fonte do descontentamento e da violência dos bairros marginalizados onde os recrutadores do terrorismo islâmico encontram tantos prosélitos. E o enorme descontentamento operário produzido pelas indústrias obsoletas que são fechadas, sem que sejam substituídas por novas, fez com que o antigo cinturão vermelho de Paris, onde dez anos atrás o Partido Comunista ainda se assenhoreava, seja agora um baluarte da Frente Nacional.

Tudo isso é o que Emmanuel Macron quer mudar e assim o disse com uma clareza quase suicida ao longo de toda a sua campanha, sem ter cedido em momento algum a concessões populistas, porque sabe muito bem que, se as fizer, no dia de amanhã, no poder, será impossível para ele levar adiante as reformas que tirem a França de sua inércia histórica e a transformem em um país moderno, em uma democracia operacional e, como já é a Alemanha, na outra locomotiva da União Europeia.

Macron está consciente de que a construção de uma Europa unida, democrática e liberal não só é indispensável para que os velhos países do Ocidente, berço da liberdade e da cultura democrática, continuem desempenhando um papel primordial no mundo de amanhã, mas também que, sem ela, eles ficariam cada vez mais marginalizados e empobrecidos, em um planeta no qual Estados Unidos, China e Rússia, os novos gigantes, disputariam a hegemonia mundial, fazendo a Europa “des anciens parapets” de Rimbaud retroceder a uma condição terceiro-mundista. E que Deus ou o diabo nos livrem de um planeta em que todo o poder ficaria repartido nas mãos de Vladimir Putin, Xi Jinping e Donald Trump!

O europeísmo de Macron é uma de suas melhores credenciais. A União Europeia é o mais ambicioso e admirável projeto político da nossa época e já trouxe enormes benefícios para os 28 países que fazem parte dela. Todas as críticas que podem ser feitas a Bruxelas são suscetíveis de conduzir a reformas e adaptações às novas circunstâncias, mas, ainda assim, graças a essa união os países membros pela primeira vez em sua história têm desfrutado de uma coexistência pacífica tão longa, e todos eles estariam pior, economicamente falando, do que estão se não fosse pelos benefícios que a integração lhes trouxe. E não acredito que se passem muitos anos até que o Reino Unido descubra isso, quando as consequências do insensato Brexit se fizerem sentir.

Ser um liberal, e assim se proclamar, como fez Macron em sua campanha, é ser um genuíno revolucionário na França dos nossos dias. É devolver à empresa privada sua função de ferramenta principal da geração de emprego e motor do desenvolvimento, é reconhecer no empresário, acima das caricaturas ideológicas que o ridicularizam e vilipendiam, sua condição de pioneiro da modernidade, e lhe facilitar a tarefa enxugando o Estado e concentrando-o no que de fato lhe diz respeito – a administração da justiça, a segurança e a ordem pública –, permitindo que a sociedade civil compita e atue na conquista do bem-estar e da solução dos desafios econômicos e sociais. Essa tarefa já não está nas mãos de países isolados e encapsulados, como queriam os nacionalistas; no mundo globalizado dos nossos dias, a abertura e a colaboração são indispensáveis, e isso os países europeus entenderam dando o passo feliz da integração.

A França é um país riquíssimo ao qual as más políticas estatizantes, pelas quais foram responsáveis tanto a esquerda como a direita, mantiveram empobrecido, atrasando-o cada vez mais, tanto que a Ásia e a América do Norte, mais conscientes das oportunidades que a globalização ia criando para os países que abriam suas fronteiras e se inseriam nos mercados mundiais, foram deixando-a cada vez mais para trás. Com Macron se abre pela primeira vez em muito tempo a possibilidade de que a França recupere o tempo perdido e inicie as reformas audazes – e custosas, claro – que afinem esse Estado adiposo que, como uma hidra, freia e regula até a exaustão sua vida produtiva, e mostre a seus jovens mais brilhantes que não é a burocracia administrativa o mundo mais propício para exercitar seu talento e criatividade, e sim a vastidão à qual todos os dias a fantástica revolução científica e tecnológica que estamos vivendo acrescenta novas oportunidades.

Ao longo de muitos séculos a França foi um dos países que, graças à inteligência e audácia de suas elites intelectuais e científicas, encabeçaram o avanço do progresso não só no mundo do pensamento e das artes, mas também no da ciência e da técnica, e por isso fez avançar a cultura da liberdade a passos de gigante. Essa liberdade foi fecunda não só nos campos da filosofia, literatura e artes, mas também no da política, com a declaração dos Direitos do Homem, fronteira decisiva entre a civilização e a barbárie e um dos legados mais fecundos da Revolução Francesa. Dormindo sobre seus louros, vivendo na nostalgia do velho esplendor, do estatismo e da complacência mercantilista, a França se foi aproximando ao longo de todos estes anos de um inquietante abismo ao qual o nacionalismo e o populismo estão a ponto de precipitá-la. Com Macron, poderia começar a recuperação, deixando somente para a literatura o perigoso costume de olhar com obstinação e nostalgia o irrecuperável passado.

Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Edições EL PAÍS, SL, 2017.

© Mario Vargas Llosa, 2017.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_