Geddel e Temer na versão baiana de ‘Aquarius’
Não há o que supere o filme mais assombroso da temporada. Tudo está lá: a tragicomédia do impeachment, a tentativa de brecar a Lava Jato, a anistia aos corruptos... Chupa, Hitchcock
É como se o presidente Michel Temer, neste interminável 2016, o ano da pós-verdade, acabasse na trama do filme Aquarius, do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho. O enredo, baseado em fatos reais, revelaria um temeroso mandatário do país às voltas com a possível liberação de uma licença do Iphan, o Instituto Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para a construção de uma torre de apartamentos de luxo.
Em vez da Boa Viagem do roteiro original, o empreendimento La Vue, na Ladeira da Barra, em Salvador, um atentado da especulação imobiliária com a cidade. O poeta Waly Salomão recita Gregório de Mattos: “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante”.
Já vimos esse filme também no cais José Estelita, no mesmo Recife de Aquarius. Um filme que se passa toda semana em algum bairro perto de você. E não apenas nas capitais. O desrespeito à história da arquitetura rumou para o interior do país. Haja prédio. Tudo com nome de entortar a língua dos matutos.
Tela escura. Agora penumbra. Aos poucos vamos identificando a figura do ministro Geddel Vieira Lima. Confiante no poder geral e irrestrito outorgado pelo presidente, o baiano pressiona o até então diplomático ministro da Cultura Marcelo Calero. Arrocha, acoxa, como se diz no Nordeste. É o seu método da velha política, por que mudaria neste momento em que precisa da sua varanda para uma das vistas mais bonitas do mundo, a Baía de Todos os Santos?
“E aí, como é que eu fico nessa história?”, indaga o amigo de confiança de Temer. Close up no Calero. Plano fechadíssimo na face angelical do jovem ministro. Olhar de espanto. Será que não sabia com quem estava lidando em uma gestão acusada de tramoia e golpe? Talvez fosse tão bem-intencionado quanto qualquer outro paneleiro das varandas gourmets da vida. Acontece. Corta. Sigo botando fé em uma certa ingenuidade política. E como estamos espiritualmente na Bahia, Menininha do Gantois que nos guarde e proteja. Corta.
"Talvez Calero fosse tão bem-intencionado quanto qualquer outro paneleiro das varandas gourmets da vida. Acontece"
Letreiro na tela em tipologia lindamente barroca: “Quase uma semana depois”. Fade in. Segue o filme. O até então simpático, conivente e confiável ex-ministro da Cultura entrega o presidente em depoimento à Polícia Federal. Além do arrocha do Geddel, teria sido “enquadrado” pelas mãozinhas assustadoras de expressionismo alemão do sr. Michel Temer. Lenha nessa moqueca que o roteiro só melhora. Vou botar um bode preto do Mercado de São Joaquim só para ganhar mais dramaticidade a próxima cena. Segue em plano sequência interminável.
Em câmera subjetiva, um rosto não-identificável adverte o menino Calero: “Quem manda confiar em traidor da Pátria!” . Entendi que poderia ser a assombração de Glauber Rocha descendo a ladeira do Porto da Barra. No que enxertamos imagens do Cinema Novo, principalmente do filme Terra em Transe, na película, além da cena de Sônia Braga, a resistente Clara de Aquarius, no tapete vermelho de Cannes com uma trêmula folha de papel A4 escrito golpe em francês. O fim está longe, Temer só acabou de chegar à trama macabra.
O homem que sabia demais
Não há Aquarius, agora na sua versão baiana, que supere o filme mais assombroso da temporada. A cada movimento político em Brasília, fico admirado como Romero Jucá, ministro relâmpago de Michel Temer e agora líder do mesmo governo no Senado, é um roteirista genial. Não deixa uma trama solta, tudo faz sentido no enredo, um guia perfeito para um filme de ação e suspense. Rebobino a fita do seu edificante diálogo com Sérgio Machado. Tudo estava lá. A tragicomédia do impeachment no Congresso, a generosidade do STF, a tentativa de brecar a Lava Jato, a anistia à ficha corrida dos corruptos, a sangria estancada etc. Filme de tirar o fôlego. Chupa, Alfred Hitchcock.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), livro adaptado para o cinema pelo diretor pernambucano Claudio Assis.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.