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Coluna
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O estado de conflito é inerente à Colômbia

Não se pode compreender racionalmente o comportamento da sociedade colombiana e de seu sistema político

Mulher escreve em apoio ao acordo de paz.
Mulher escreve em apoio ao acordo de paz.Ivan Valencia (AP)

Anos atrás, 2000 ou 2001, quando exercia o cargo de secretário-geral do Itamaraty, estive em missão em Bogotá para uma reunião ministerial latino-americana. Terminado o evento, decidi ficar dois dias mais para ver algumas autoridades do governo — o embaixador havia-me preparado um bom programa de entrevistas — assim como duas ou três pessoas amigas. Queria entender o que estava se passando então naquele pais vizinho.

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Ao chegar à noite na embaixada, encontrei-me com o embaixador para jantar. Comecei a relatar para ele o que tinha ouvido durante o dia de conversas. Ao final, passei a tirar algumas conclusões sobre a política colombiana, os conflitos, as contradições existentes entre a democracia formal e o narcotráfico e assim por diante.

Em dado momento, o embaixador me interrompeu: "O problema aqui, Seixas, é que se você ficar um ou dois dias conversando com pessoas, você vai achar que entendeu tudo e que é capaz de escrever um livro sobre a Colômbia. Se você ficar uma semana, você vai achar que talvez possa escrever um artigo. Se ficar mais de um mês, você se dará conta de que não pode escrever coisa alguma."

Sábias palavras. Na hora não captei tão bem a profundidade e a acuidade da observação do meu colega. Hoje, ao ver o resultado do plebiscito em que a sociedade colombiana rejeitou o acordo de paz que o Governo concluiu penosamente com o principal agente da guerrilha colombiana, as FARC, recordo a experiência e dou-me conta de quão pouco se pode compreender racionalmente o comportamento da sociedade colombiana e de seu sistema político.

Um país de longa tradição democrática, cujas elites estão entre as mais cultas da América Hispânica, mas que, ao mesmo tempo, luta há décadas (talvez desde sempre...) com grupos armados extremistas, de uma violência brutal, que levam o país a um estado de tensão permanente. E o país, tão ligado aos EUA com o qual se alinha em todas as principais questões latino-americanas e internacionais, rejeita a possibilidade de reintegrar os guerrilheiros na sociedade civil, assim como a possibilidade daí decorrente de melhor conter o narcotráfico? Qual o mistério que se esconde por trás disso?

Não será por acaso que o gigante da literatura latino-americana, criador para todos o efeitos do "realismo mágico", Gabriel García Márquez, continua a ser lido e relido por todos os que se interessam por entender os mistérios profundos de nossa realidade latino-americana. “Cem Anos de Solidão foi o primeiro García Márquez que li. Com seu lirismo, sua sedução, com o relato de realidades efetivamente misteriosas e contraditórias, García Márquez terá sido o melhor intérprete da sempre misteriosa e surpreendente personalidade latino-americana. No fundo somos todos muito parecidos, gente que viemos de países periféricos povoados por metrópoles atrasadas no tempo, com imensa dificuldade para integrar componentes sociais, comumente marginais em seus países de origem, com a população indígena de maior ou menor desenvolvimento original: do México à Patagônia.

Razão tinha Cervantes, que pôs na boca do Quixote uma verdade muito expressiva sobre a realidade histórica: "Os historiadores devem ser pontuais, verdadeiros e despidos de paixões; nem o interesse, nem o medo, o rancor ou a amizade, os faça se afastar do caminho da verdade, cuja a mãe é a História, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do que está por vir". Nada mais quixotesco do que imaginar que a história possa ter este tipo de objetividade. E nada menos latino-americano: região em cujas profundidades vamos encontrar sempre mistérios em cima de mistérios, em cima de mais mistérios. Somos todos cidadãos de Macondo!

É de Mario Vargas Llosa a apreciação de que Macondo sintetiza e reflete (ao mesmo tempo que nega) a realidade real: sua história condensa a história humana e as etapas por que atravessa correspondem em grande linhas às de qualquer sociedade e, em seus detalhes, aos de qualquer sociedade subdesenvolvida, sobretudo as latino-americanas.

A sociedade colombiana certamente não deseja a continuação da guerra. Mas não deixou de revelar parodoxalmente que não deseja a paz. Talvez porque o estado de conflito seja tão inerente à personalidade do país, talvez porque as gerações atuais não conheçam outra realidade que não a guerra, talvez porque desconfiam, em princípio, de qualquer governo: "Hay gobierno, soy contra!

Mais de 200 mil mortos e milhões de refugiados em 52 anos de guerra. A maioria dos votantes sequer se dignou a votar e 37% dos que votaram condenaram a paz que, apesar da declaração em contrário dos dois lados, emergiu incerta da votação.

O presidente Juan Manuel Santos não se demitiu após o "não”, como chegara, durante a campanha, a insinuar que poderia vir a fazer. Não só isso, mas ganhou também o Nobel da Paz. E seu principal opositor, o ex-presidente Alvaro Uribe, avantajou-se em popularidade. Foi, guardadas as devidas proporções, um Brexit tropical. Ambos os fenômenos, como bem observado por um analista da Infolatam, confirmam como é cada vez mais complexa a relação entre as elites que governam e a a cidadania mais "empoderada", melhor formada, mais autônoma e mais crítica com o poder.

A Colômbia vai precisar de muito empenho e de mais coesão para superar este grande percalço. Como Aureliano, personagem a quem García Márquez atribui, no último período de sua obra-prima, a seguinte reflexão: tendo decifrado todos os pergaminhos em que se contava a história secular da família, concluiu que o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda oportunidade sobre a terra.

Triste; muito triste, mas assim é nossa realidade quixotesca: "Todas estas borrascas que nos afetam são sinais de que logo o tempo vai-se acalmar e hão de acontecer coisas boas, porque não é possível que nem o mal, nem o bem sejam duráveis, donde se conclui que, o mal tendo durado muito, o bem já esta próximo!"

Será? Será mesmo?, perguntamo-nos todos, entre descrentes e inconformados.

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