Sobral, a cidade da “passeata do crime” e da “lei da perna manca”
Pacificação das periferias da cidade pelo crime organizado foi comemorada em marcha pelo município
O dia 28 de junho foi atípico na cidade de Sobral, cidade com cerca de 147.350 habitantes localizada a 240 km de Fortaleza. As ruas geralmente vazias no horário do almoço devido ao forte calor – quando os termômetros chegam facilmente a 38° C –, foram tomadas por centenas de moradores dos bairros periféricos. A passeata pacífica, que terminou bloqueando a ponte sobre o rio Acaraú, um dos principais acessos ao município, não pedia a saída definitiva da presidenta afastada Dilma Rousseff, nem era um protesto contra o que alguns consideram um golpe do interino Michel Temer. Os manifestantes foram às ruas para comemorar a “pacificação” das periferias de Sobral, obra das facções criminosas Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho. Pela nova ordem vigente, homicídios e roubos estão proibidos nos bairros afastados.
As autoridades se apressaram em chamar o ato de “a passeata do crime”. O balanço final do protesto foram 48 adultos detidos e 40 adolescentes apreendidos, a maior prisão em massa da história do Ceará. “Os manifestantes estavam intimidando as pessoas, bloqueando ruas, dirigindo motos de forma perigosa e obrigando o comércio a fechar”, afirma o coronel Assis Azevedo, 49, comandante da Polícia Militar de Sobral. Ele afirma que no dia a PM recebeu dezenas de ligações de moradores assustados com o “clima de terror” nas ruas. “Eu nunca tinha visto tanto ladrão junto, nem no presídio! Aí eu determinei que aquilo acabasse”, explica. O coronel afirma que durante a passeata ouviam-se gritos de guerra que diziam “aqui é o crime se irmanando”, e “agora vamos parar de nos matar”. “Isso tudo incomoda o cidadão de bem”, diz.
Para Azevedo, no entanto, a pacificação tem um lado positivo. “Até nós batemos palmas se eles não se matam, melhor para nós, mas a que custo? Essa paz tem um preço”, questiona. Ele confirma que houve uma queda no número de homicídios no município de cerca de 20% desde março, mas credita isso “ao trabalho incansável da polícia, que aumentou o número de prisões e de apreensões de droga na cidade”. O coronel, no entanto, não entra em detalhes sobre as estatísticas mencionadas.
Henrique Hideralino de Souza, 18, fuma maconha e toma um copo de suco sob a sombra de uma árvore no bairro Terrenos Novos, considerado um dos mais problemáticos da periferia da cidade, em início de agosto. Ele se envolveu na atividade das gangues há pouco mais de um ano, e explica como se deu a convocação para o protesto. “O recado veio da cadeia. Disseram que era pra gente ir em paz pra área do Coxinho [nome de uma gangue rival] e fazer a passeata”, explica. A ordem foi recebida com incredulidade por alguns dos criminosos. “Ninguém estava acreditando no começo: ‘Como vamos ser aliado de quem matou nóis? De quem deu tiro em nóis?”, diz. Novamente, de dentro de uma cela veio novo recado, na forma de um áudio enviado por Whatsapp. As principais lideranças das gangues rivais e integrantes do PCC e do CV reforçaram a mensagem de que agora estava tudo pacificado, que “era tudo uma coisa só”.
“Aí depois desse segundo salve nós fomos né? Estávamos jogando bola aqui, aí subimos para [as regiões controladas pelos] Coleiros [nome de outra gangue rival], passamos pelo Coxinho e Gato Morto [nomes de gangues que controlam outras áreas], Casa Nova...”, diz Souza. Segundo ele o ato foi pacífico, e ninguém portava arma no momento da marcha. A ordem de fazer uma manifestação "pela paz" também foi recebida com receio em outros bairros. Francisco Breno Alcântara, 18, da gangue APU, conta que sentiu raiva durante a passeata. “Tinha muito ex-inimigo na marcha, lado a lado, deu raiva, mas não tinha o que fazer. A ordem da cadeia foi clara: paz. Agora só pode roubar rico”, afirma. Passado o estranhamento inicial, ele conta que agora pode ir “para o bairro que quiser sem medo”, e afirma que “não morre ninguém no APU faz mais de mês”. No final, um baile funk na quadra de esportes do bairro selou a paz entre os rivais.
A lei da perna manca
A nova ordem imposta pelo Comando Vermelho e pelo Primeiro Comando da Capital nas periferias trouxe paz para os moradores. Mas junto com a tranquilidade, também vigora nas ruas um código de conduta com punições para quem foge à regra de não assaltar os moradores. Apelidada de lei da perna manca, consiste em punir os pirangueiros (assaltantes, na gíria local) com tiro na perna, na mão, ou pauladas nos membros. “Quem vacila toma tiro na perna para servir de símbolo para os outros”, explica Evilásio Junior. Para disseminar a mensagem, as punições são gravadas com celular e postadas nas redes sociais e no Youtube.
Sentada na porta de casa, no bairro conjunto Santo Antônio, periferia de Sobral, Maria Francisca Vasconcelos, 72, sorri quando lembra da manifestação. “Eu estava em casa descansando, quando o pessoal passou aqui na porta. Não vieram com baderna, vieram na paz, cantando, uma multidão de jovens, alguns soltavam fogos”, afirma. De acordo com ela, “na ida a polícia não fez nada, mas na volta sentaram o sarrafo”. Sobre a situação após a pacificação, Maria é só elogios: “No começo ninguém podia ir pra lá nem pra cá, hoje todo mundo circula. Tá uma tranquilidade só”.
Evilásio Júnior, 25, dono de uma pequena mecânica no bairro Terrenos Novos, diz que após a pacificação a situação “melhorou muito” na periferia. “Isso é inegável. Agora quando tenho serviço fora saio e deixo a porta da oficina aberta: não some nem um parafuso aqui de dentro”, diz. “Antes ali na rua de baixo tinha assalto todo dia”. As lembranças do período pré-paz ainda estão vivas na memória de Júnior. “Aqui tinha muita bala, muito confronto. Praticamente cada quarteirão era intrigado com o outro, toda semana tinha morte”, conta.
O aposentado Alberto Lopes Veiga, 88, que mora em uma das áreas nobres de Sobral, critica a passeata (que ele não viu), mas diz entender o que provoca “a revolta” da população. “Abriram a mente do povo, e o que acontece é que o povo ficou revoltado: ‘Um deputado ganha 60.000 reais e ainda rouba?’. Isso gera uma revolta”, afirma. Ele ficou sabendo da passeata pelas redes sociais, e optou por “ficar em casa”. O vendedor de churros José Orlando, 34, disse que “acompanhou de longe” o ato. “Disseram que era para comemorar a paz, e essa paz funcionou, o crime diminuiu na cidade”, afirma. De acordo com ele, antes da pacificação “quase todo dia tinha jovem morto, de 16, 17 anos”.
Tiago Lima Bruno, 24, foi um dos adultos presos durante o protesto. Ele, que nega ser integrante de gangues, participou da marcha que partiu do conjunto Santo Antônio, na periferia da cidade. "Tinha muito trabalhador na passeata também, muita criança, não era só bandido não", afirma. Ficou seis dias detido antes de ser liberado sem acusações. “Falaram que eu era do PCC, aí fiquei um tempo na delegacia depois fui levado ao presídio”, diz. No cárcere ele se confrontou com uma realidade semelhante à das ruas: “A mesma paz que tá na rua, tá no presídio também. Tudo, tudo em paz”.
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