Brasil: o eterno sonho
Conseguiremos um dia decifrar o enigma e superar nossas entranhadas deficiências?
O homem, no dizer clássico de Ortega y Gasset é ele e suas circunstâncias. Cada um de nós brasileiros, portanto, é o que é, o que é sua família, seu entorno e o que é o Brasil.
Esses elementos ficaram bem aparentes no belíssimo espetáculo de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Foi uma expressiva homenagem à fantasia brasileira, num momento em que a realidade nos oprime. Nossos mitos de igualdade e de uma história harmoniosa, integradora, ficaram aparentes. Infelizmente, porém, ainda não somos o que pensamos que somos ou gostaríamos de ser. Talvez, porque, diante de uma realidade hostil para a maioria dos brasileiros, em vez de agir, prefiramos nos refugiar em imagens construídas, cada qual fazendo o seu 14-Bis, sair voando de costas e a Europa se curvando, mais uma vez, diante do Brasil.
Impossível deixar de pensar na nossa terra com constrangimento e desânimo cada vez que se abre o jornal ou se vê o noticiário na televisão. No Rio de Janeiro, de onde venho e para onde voltei ao final da carreira diplomática, cada manhã, mesmo as de céu radioso como são as do inverno, se ensombrece pelo peso das notícias: a violência das ruas, a roubalheira generalizada, a criminalidade em geral atingiram níveis possivelmente inéditos. A lentidão da Justiça, a impunidade de muitos – especialmente dos mais poderosos política ou financeiramente - fazem com que sejamos levados a conviver com os mesmos escândalos por longuíssimo tempo. Como se fizessem parte da ordem natural das coisas.
Nossas circunstâncias são de transformação. Já vivemos outras. Mas hoje o Brasil mudou bastante. Há muito mais brasileiros buscando habitação, trabalho, educação. E há, felizmente, democracia. Foi-se a longa época em que se pensava que nossos problemas poderiam ser resolvidos por algum tipo de “despotismo esclarecido”. Creio não haver risco de um retorno a esses tempos passados.
Mas permanecem ameaças presentes de violência nas ruas, de ataques à civilidade, de “falta de vergonha na cara”, como se dizia antigamente. Hoje a falta de vergonha é tão generalizada que mal se emprega a expressão.
Felizmente, estamos chegando ao fim do processo de impeachment. Se há uma oportunidade de renovação é essa. Se tivesse que identificar a prioridade número um da renovação do país, não hesitaria em apontar o controle e o fim do processo de corrupção generalizada que vivemos. A corrupção é a mãe de todos os vícios que ameaçam a democracia e só podemos esperar que a Lava Jato conclua sua missão logo que possível e abra novos horizontes para a correta administração do país.
A corrupção vem do mais profundo de nossa história. É de Martim Affonso de Souza, responsável pela primeira expedição colonizadora do Brasil, frase que ouvi recentemente na conferência de uma grande historiadora portuguesa: “Quem diz que eu sou cobiçoso diz a maior verdade do mundo, que eu cobiço dinheiro porque não o tenho e porque não posso servir-vos, nem ser honrado sem ele.”
Esse raciocínio marca a história do Brasil até hoje, quando a lentíssima Justiça, os inúmeros recursos, as manobras protelatórias se sucedem para impedir a finalização dos processos judiciais e administrativos.
A imensa quantidade de partidos políticos, as regalias desproporcionais de que desfrutam nossos representantes em todas as esferas públicas, o cinismo e a arrogância que predominam nos agentes políticos, o toma lá dá cá. Tudo o que impede a tão adiada construção do Brasil socialmente justo e economicamente desenvolvido pode-se resumir em frase que anotei em meus cadernos, ouvida de um político tradicional em 1983, com referência à cobertura dada pela imprensa à seca que assolava o Nordeste, dias após a publicação no “Jornal do Brasil” de foto em que uma família exibia seu alimento cotidiano: ratos ou, como se diz por lá, “calangos”. Terno bem cortado, camisa sob medida, sapatos de verniz, unhas feitas e bem nutrido, o senhor, que ficará sem nome, indignava-se com a incompreensão da imprensa para com o que qualificava de fatos normais na vida do sertão: “Calango bem cozidinho é até muito gostoso!” Certamente esse senhor jamais tinha tido que provar alimento tão repugnante. Qual a rainha Marie Antoinette que dizia, com descaso e arrogância: “se o povo não tem pão, que coma croissants!” E outra que ouvi em tempos idos em Brasília de um latifundiário baiano jactando-se de haver resolvido o problema demográfico em suas terras mediante a vasectomia em massa de seus trabalhadores. ”Eles aceitaram bem direitinho. Botei todo o mundo em fila – eu sou médico! – e esterilizei o pessoal. Ninguém reclamou!”
Entre o descaramento de Martim Affonso de Souza na era colonial e a arrogância dos nossos políticos dos tempos atuais, Joaquim Manuel de Macedo, o “Macedinho” do Rio de Janeiro, escreveu dois romances (“A carteira do meu tio” e “Memórias do sobrinho do meu tio”) em que traçou um quadro hediondo das práticas políticas de então, arquétipo do “fisiologismo” dos tempos atuais. Eis aí, pois, disse Macedo, resplandecendo ufanosa a escola filosófica do Governo: o esquecimento do passado, os gozos do presente e o descuido e abandono do futuro. Já então, embora as proporções dos escândalos fossem diferentes, vivenciavam-se os problemas de hoje. Pouco mudou. Só as proporções.
Mais para o século XX, Paulo Prado, no “Retrato do Brasil”, sintetiza seu pensamento na primeira frase do livro: “Numa terra radiosa vive um povo triste”.
Manuel Bonfim condenou a “queda moral” da política republicana em que “…integralizando-se num regime de indiferença pela opinião pública, avesso à verdade e à sinceridade, alheio a métodos reais, privilegiando o constante favoritismo, cultivando intensamente a apostasia política, aceitando e manejando o servilismo, roeu as últimas fibras do caráter nacional…”
E encerro esta lista depressiva com a visão “de fora”do grande antropólogo francês Claude Lévi-Strauss que, ao visitar São Paulo nos anos 30 e 50, comenta em suas memórias do Brasil que as cidades do Novo Mundo passam da contemporaneidade à decrepitude sem se deter, como as cidades europeias, na antiguidade. Em São Paulo, disse Lévi-Strauss, o que o impressionou foi a “precocidade dos estragos do tempo”.
Tristes trópicos, de fato, que ressurgem em minhas percepções num momento da vida em que esperava poder viver num país socialmente justo e economicamente desenvolvido, capaz de me encher de espírito cívico. E o que tenho? Um mosaico de expectativas frustradas e esperanças decompostas.
Haverá uma saída? Encontraremos as lideranças capazes de purificar nossa vida política, econômica e social? Estaremos condenados a conviver com o pensamento dos Martins Affonsos de Souza da vida e sofrer eternamente em berço esplêndido? Como arrancar, como dizia Capistrano de Abreu, “das entranhas do passado o segredo angustioso do presente?”. Conseguiremos um dia decifrar o enigma e superar nossas entranhadas deficiências? Acho - e espero - que sim. Mas deve demorar....
Comecei com um pensador espanhol. Termino com um poeta, também espanhol, Rafael Alberdi:
“Sonhar um sonho foi nosso destino.
Mas quem pode agora
Sequer sonhar que está sonhando um sonho?”
Quando deixaremos de ter de recorrer à fantasia mítica que caracterizou a belíssima abertura das Olimpíadas e quando seremos capazes de lidar com um presente que nos permita voltar a sonhar com base na realidade?
Luis Felipe de Seixas Corrêa é diplomata, chefiou a missão do Brasil na ONU e na OMC. Foi por duas vezes secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (1992 e 1999-2001).
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