A velhinha de siracusa
O presente é profundamente inquietante e o futuro incerto. O passado, porém, é conhecido e pode dar algumas pistas sobre as causas da atual tragédia brasileira
Tanta coisa acontecendo no mundo! Mas é praticamente impossível fugir do tema da crise política, econômica e social pela qual passa o Brasil. A imprensa não fala de outra coisa, os amigos quando se encontram querem saber o que pensam os outros, os colunistas fazem um esforço enorme para buscar a originalidade em suas matérias nos jornais e os comentaristas na TV se esmeram em dar algum sentido a suas análises instantâneas da realidade.
O presente é profundamente inquietante e o futuro incerto. O passado, porém, é conhecido e pode dar algumas pistas sobre as causas da atual tragédia brasileira. O toma lá dá cá, o é dando que se recebe vêm do fundo da nossa democracia monárquica. A estabilidade do Império foi alcançada graças à chamada política da “conciliação dos Partidos”. Sob o comando dos conservadores, alguns liberais proeminentes assumiram pastas e cargos no Governo, recebendo benesses para promover os interesses de suas regiões de origem. O condutor da política de conciliação foi Honório Hermeto Carneiro Leão na qualidade de Presidente do Conselho de Ministros. Diz-se que certo dia foi chamado às pressas ao Plenário da Câmara porque um deputado da “Base Aliada” fazia um discurso inflamado contra o Governo, acusando-o de prepotência, irregularidades e políticas equivocadas. Honório pediu um papelzinho ao contínuo e nele escreveu: “Caro deputado: só para lembrar-lhe que a nomeação de seu filho saiu hoje; já está em vigor!”. O contínuo levou o bilhete ao orador e este continuou por um tempinho suas perorações anti-governamentais. De repente, parou, deu um murro na tribuna e disse a plenos pulmões: “Isso é o que diz essa oposição destrutiva e antipatriótica! Eu tenho para mim que este é o melhor governo que jamais tivemos no Brasil! É um governo trabalhador, visionário, capaz de conduzir nosso país ao progresso merecido!”
Não sei se foram exatamente essas as palavras utilizadas, mas o sentido de sua intervenção foi esse. O que demonstra o enraizamento do que, muitas décadas depois, veio a se chamar o “fisiologismo” da democracia brasileira: políticos alimentados por benesses que fluem por todo o sistema sanguíneo do "corpo" do Poder e de suas bases locais, passam pelos Governos do Estados e pelas casas legislativas, chegando aos mais altos escalões. Cada político brasileiro é um ponto nessa curva. Leva para cima seus interesses clientelistas e dissemina para suas bases os favores que recebeu. Irriga assim a corrente sanguínea do país. Vindo do Império e considerado essencial para a fluente administração do país, o chamado fisiologismo esteve sempre presente e acabou sendo cada vez mais associado à corrupção.
Getúlio Vargas terá sido, mais adiante, um grande mestre desse método de administração. Procurava contentar todos, dando a cada um o que pedia ou pelo menos a ilusão de que seria atendido. Certo dia festivo, recebia no Catete dignitários, políticos e outras autoridades. Um deles, em determinado momento, ao cumprimentá-lo, disse: “Presidente, está sobre sua mesa um projeto de decreto que determina a construção de uma estrada entre a cidade A e a cidade B no meu Estado. Eu lhe peço que assine logo. Vai servir muito ao progresso de Estado e beneficiar os prefeitos aliados a nós”. Getúlio abraçou o político e respondeu: “Você tem toda razão”! Vou ver isso logo!”. Alguns convidados depois, chegou a vez de outro deputado do mesmo Estado e também da “base aliada”. Após os cumprimentos, disse em tom de advertência ao Presidente: "Soube que o Senhor tem sobre sua mesa a minuta do Decreto tal. Não assine, pelo amor de Deus, Presidente. É um projeto que só interessa a nossos adversários. Conto com o senhor!" E Getúlio disse a mesma coisa que dissera ao outro: “Você tem toda razão. Vou ver isso!” D.Darcy, que estava do lado, encontrou maneira de puxar o marido a um canto e dizer-lhe: “Getúlio, você não pode fazer isso! Vem um deputado, lhe pede uma coisa e você diz que ele tem toda razão. Vem outro, diz exatamente o contrário e você lhe diz que ele tem toda razão. Você não pode fazer isso!” Ao que Getúlio, olhando fixamente nos olhos de D. Darcy comentou: “Você tem toda razão!”
São pequenas vinhetas lembradas ao acaso que bem ilustram uma certa maneira brasileira de fazer política. Maneira esta que acabou se “consagrando” durante o período militar. Os Presidentes militares do Brasil, desejosos de manter as aparências do funcionamento da democracia, acabaram por institucionalizar o fisiologismo como prática política destinada a garantir votações favoráveis nos legislativos estaduais e federais.
A carga é pesada. Mas continua funcionando hoje em dia de forma escancarada. Provoca distorções em cadeia (a expressão me veio sem pensar...) na administração dos dinheiros públicos, na eficiência da administração, e, como se não bastasse, na avaliação dos políticos pela sociedade civil. O toma lá dá cá chegou hoje em dia a seu ápice. A corrupção daí decorrente está sendo enfrentada com tenacidade por boa parte do sistema judiciário. Mas os meios políticos continuam a se nutrir de promessas e de favores e a espalhar benefícios.
Onde iremos parar? — perguntam-se todos os brasileiros entre uma passeata dita de “coxinhas” e outra de “mortadelas”.
Não deixa de haver, porém, uma certa inquietação: se sempre foi assim, como poderemos imaginar que seremos capazes de mudar efetivamente as práticas políticas ao substituir os atuais dirigentes por outros? Sem dúvida que é preciso mudar, pensa a maioria da população segundo as sondagens. Os escândalos assumiram proporções inéditas. Nossa elite dirigente perdeu credibilidade e, portanto, autoridade.
Cada vez que ouço isso, lembro-me da história, não sei se real ou inventada, que me contou um antigo professor do colégio. Passou-se na Antiguidade, em Siracusa, poderosa cidade romana na extremidade da Sicília. Um ponto estratégico para a expansão e a segurança de Roma. Tradicionalmente dirigida por “tiranos”, Siracusa vivia sob ditaduras perfeitas, uma atrás da outra. Um dos tiranos, não sei exatamente qual, lá pelos anos 340 A.C., depois de longos anos de governo corrupto, autocrático e cruel, veio a falecer. E o povo saiu às ruas para comemorar. Uma senhora — a “velhinha de Siracusa” —, porém, deixou-se ficar pensativa sentada na escadinha de um templo. O povo se aproximou dela e alguém perguntou: “Por que a senhora está triste? Não sabe que o tirano morreu? Venha celebrar! Ou será que a senhora gostava do tirano?” Ao que a velhinha respondeu: ”Eu tinha horror ao tirano! Só não celebro porque esse tirano eu conhecia. O que vem por aí não tenho ideia de quem será!”
Há muitas velhinhas de Siracusa atualmente perplexas Brasil afora. É por causa delas que a crise se arrasta, sem que se saiba como vai terminar. É hora de por fim a esse estado de coisas e de completar o processo de construção da nossa tardiamente conquistada democracia com base numa separação adequada de poderes, com uma drástica redução do número de partidos políticos e de Ministérios e, principalmente, com o fim da política clientelista que nos aflige.
Será decerto uma tarefa gigantesca. Mas é preciso empreendê-la rapidamente sob pena de que nosso país permaneça socialmente inquieto, economicamente inseguro e politicamente prostituído. Descrente e fatalista como a velhinha de Siracusa...
Ainda há tempo. Ainda há esperança!
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