A guerra de mentira está chegando ao fim
Vai começar um mandato-tampão para aplicar uma agenda draconiana sem se preocupar em submetê-la às urnas
“Guerra de mentira” é como se convencionou chamar o intervalo de oito meses que vai de quando França e Inglaterra declararam guerra à Alemanha em 1939 até a invasão relâmpago de França, Holanda, Bélgica e Luxemburgo pelo Terceiro Reich no ano seguinte. A peculiaridade desta que os ingleses chamam de phoney war – os franceses, mais irônicos, preferem drôle de guerre – é haver sido um longo período em que havia uma guerra declarada, mas sem hostilidades abertas entre os envolvidos.
É uma situação comparável a que se vive no Brasil desde a aprovação do afastamento de Dilma Rousseff da presidência. Com a iminência da votação que deve tornar este afastamento definitivo, contudo, a tendência é que este hiato de imobilidade (Sitzkrieg é a expressão jocosa dos alemães) se transforme em conflito aberto. A maior dúvida talvez seja se este conflito terá dois lados, ou se será tão unilateral e acachapante como a Blitzkrieg que derrotou a França em maio de 1940.
Do lado do Governo que deixará de ser interino, está claro porque o arsenal pesado não foi usado logo de saída. Por menos que tenha se esforçado para esconder suas intenções, e por mais escrachado que tenha sido em vários aspectos, como em sua relação peculiar com a corrupção, o novo Governo não quis arriscar muito enquanto não estivesse seguro de sua permanência. Uma vez oficializado no cargo, contudo, Michel Temer terá pressa. Em primeiro lugar, porque ainda há muitas contas a pagar pelo apoio político, empresarial e midiático que lhe foi concedido para que capitaneasse a manobra do impeachment. Em segundo, porque, agora que a Lava Jato começa a chegar a ele e aliados de primeira hora, o custo de dar-lhe sustentação política, e portanto o preço cobrado por seus apoiadores, tende a aumentar.
É por isto que veremos o Governo tentar votar até o fim do ano uma série de propostas que visam “fazer a economia voltar a crescer” reduzindo o custo da mão de obra, e portanto a segurança e a renda, bem como os direitos e os benefícios obtidos com investimentos sociais, da maioria da população. São reformas como a trabalhista, que entre as propostas há tornar direitos como férias e 13o salário negociáveis, e a previdenciária, que pretende elevar a idade mínima de aposentadoria para 70 anos; e a PEC 241, cujo limite de 20 anos sobre gastos sociais terá impacto devastador na saúde e na educação, o que sem dúvida será futuramente usado como argumento para a privatização dos dois setores. Trata-se, em suma, de transferir toda a conta do ajuste para as classes média e baixa, isentando os mais ricos dos “sacrifícios necessários”.
Os convertidos, sozinhos, não constituem uma força social suficientemente grande para encarar o conflito que se aproxima
Acima de tudo, Temer entende que a virada do ano marca o momento em que lançá-lo ao mar tornar-se-á mais barato. A partir de então, basta que Gilmar Mendes dê continuidade a um dos pedidos de cassação da chapa Rousseff-Temer, ou que se passe a considerá-lo um peso excessivo a se carregar, para que ele seja deposto sem que a classe política precise se expor ao embaraço de chamar eleições diretas. A probabilidade de acabarmos 2017 com um presidente indiretamente eleito pelo Congresso mais desmoralizado da história não é desprezível – pelo menos, não matematicamente.
Está claro que não é justo dizer que faltou reação ou resistência ao Governo interino. Proliferaram jornadas de mobilização, campanhas nas redes sociais, manifestações individuais (como as vergonhosamente reprimidas na Olimpíada) e ocupações como as dos ministérios da Saúde e da Cultura. O que ainda assim deu a toda esta atividade um ar de “guerra de mentira” foi a escolha, deliberada ou inercial, de associar a crítica ao casuísmo do impeachment e à agenda antipopular do governo interino com uma miragem com prazo de validade: o “volta Dilma”.
Tal escolha funcionou como limite autoimposto – um freio de mão a travar a expansão das mobilizações – por dois motivos. Primeiramente, por atrelar a disputa a um horizonte temporal curto (justamente, o período que agora se encerra) e um objetivo altamente improvável (a derrota do impeachment no Senado), sem elaborar qualquer “plano B” para o caso de derrota. Em que pese o valor intrínseco da defesa da democracia, ela servia aí mais para marcar uma posição moral do que para organizar uma luta de verdade.
O segundo motivo, mais importante, é que esta escolha ignorava um dado fundamental: a demanda pela volta da presidente eleita possui baixíssimo apelo popular. Ou ignorou-se as altas taxas de rejeição que seu segundo mandato sempre acumulou nas pesquisas, ou apostou-se que o circo de horrores do Congresso e a preocupação com as instituições democráticas bastariam para que a população esquecesse uma crise econômica que já se arrasta há alguns anos e o fato de que o Governo deposto tentara aplicar o programa oposto àquele com o que se elegeu. Deste modo, assegurou-se de antemão que, se os protestos poderiam ser eficazes em mobilizar uma base social de esquerda que se dispersara nos últimos anos, nunca fariam mais que pregar para os já convertidos. E o que ficou claro desde então é que os convertidos, sozinhos, não constituem uma força social suficientemente grande para encarar o conflito que se aproxima.
Serão dois anos de um mandato-tampão em que será possível aplicar uma agenda draconiana sem precisar se preocupar em submetê-la às urnas
Acima de tudo, ignorou-se dois números importantíssimos que se mantiveram relativamente estáveis desde antes da votação na Câmara até agora. (Apenas uma pesquisa apontou uma variação significativa.) Por um lado, cerca de 2/3 da população foi a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Por outro, cerca de 2/3 da população tampouco quer Michel Temer: 62% são a favor de eleições diretas para presidente.
É nesta discrepância – o fato de que “fora Dilma” não se traduz em “fica Temer” – que reside a única possibilidade de barrar o ataque aos direitos sociais que se aproxima. A maior parte dos que apoiaram o impeachment da presidente eleita não o fizeram indo às ruas protestar, mas por omissão, passivamente. Destes, a maioria o fez por estar preocupada com a crise econômica, frustrada com o estelionato eleitoral pós-eleições e convencida de que o impasse político não tinha mais outra solução possível. Não era por ser neoliberal convicta ou admirar os militares, nem por necessariamente acreditar que só no PT há corrupção. Por si só, o espetáculo do impeachment lhes parecia alheio.
Para estas pessoas, não importa tanto que o gato se declare de esquerda ou de direita, contanto que ele cace ratos. Quando ficou claro que o PT perdera o respeito dos roedores, elas optaram pela opção que estava disponível, não por acreditar que ela era boa, mas porque era ela que estava disponível.
Em suma: enquanto 2/3 dos brasileiros recusavam ambas as alternativas (“nem Dilma, nem Temer”), tentou-se mobilizar contra a segunda insistindo na primeira (“ou Dilma ou Temer”) – o que na prática implicava, de saída, restringir a mensagem aos 1/3 da população que queriam o “volta de Dilma”, ao invés de falar aos 2/3 favoráveis a um “fora Temer”.
Se insistirmos em tentar entender a política tal como a vive a sociedade a partir da política tal como esta se faz em Brasília, não seremos capazes de entender o que está passando. O que explica a discrepância é justamente o fato de que, cada vez mais, as pessoas se ressentem de ser coagidas a escolher a menos ruim entre as opções oferecidas pelo sistema político quando consideram quase todas as opções ruins. 83% se dizem insatisfeitos com nosso sistema democrático, não porque sejam todos fascistas, mas porque nosso sistema de fato precisa urgentemente mudar.
É preciso parar de tratar a repulsa à corrupção como se esta nunca fosse mais que uma máscara do conservadorismo
Se o sentimento de déficit democrático e falência representativa tem raízes que se confundem com as de nossa história política, ele é hoje mais intenso que nunca – o que não é de espantar após quase dois anos de desmoralização institucional constante, em que se viu um réu criminal manipular Congresso e Planalto para escapar à Justiça, um ex-presidente ser legalmente impedido de assumir um ministério e um ministro do STF participar abertamente de articulações políticas, para ficar em apenas três exemplos. Dado que a resolução definitiva do impeachment assegura à elite política e empresarial a confiança necessária para abafar investigações de corrupção escancaradamente e uma ofensiva sem antecedente contra direitos conquistados ao longo da história, é de se esperar que o descolamento entre sociedade e representação aumente ainda mais.
O problema é que em 2017 o Congresso passa a estar na posição de uma criança deixada sozinha em casa pelos pais em férias – no caso, nós. Serão dois anos de um mandato-tampão em que será possível aplicar uma agenda draconiana sem precisar se preocupar em submetê-la às urnas (que a derrotaram nas últimas quatro eleições), diante de uma oposição parlamentar desmoralizada, enfraquecida e sem direção. Muita coisa pode acontecer neste tempo, de mais aumentos de salários até eleições indiretas para presidente, passando por uma emenda constitucional para instituir o parlamentarismo – outra pauta já derrotada nas urnas, mas que interessa por seu poder de blindar o sistema político ainda mais frente à sociedade. Talvez não tenhamos visto nada ainda: o golpe de verdade começa agora.
Nesta perspectiva temporal mais ampla, o limite da resistência que se esboçou até aqui fica claro. Não se trata de denunciar um golpe “da direita contra Dilma”, em relação ao qual a maioria da população se mostrou perfeitamente indiferente. O verdadeiro golpe que estamos vivendo é da elite político-empresarial contra a sociedade brasileira.
Vivemos, na última década, um processo inegável de expansão de horizontes: acesso à educação e à informação, aumento da renda e do poder de barganha no mercado de trabalho, maior grau de exigência em relação aos representantes políticos e aos serviços públicos, crescimento da autonomia e autoestima, transformação de valores tradicionais (como visto, por exemplo, na maneira descomplexada com que os adolescentes lidam com questões de gênero). Este processo, que fez tremer o sistema político em 2013, está longe de ter sido perfeito ou de estar realizado; pelo contrário, ele existe como promessa, sobretudo para a geração de adolescentes que o viveu desde a infância. E embora ele tenha sido em grande parte fruto dos governos do PT, defendê-lo não é nem igual a nem consequência necessária de defender o partido.
Em 2017 o Congresso passa a estar na posição de uma criança deixada sozinha em casa pelos pais em férias – no caso, nós
Sob este ângulo, vê-se que apear Dilma do poder não era um fim último, mas um objetivo circunstancial. Os agentes do impeachment entendem, corretamente, que são eles que têm mais a perder com estas tendências transformadoras. Seu alvo, muito mais que o PT, era esta incipiente democratização; o colapso da esquerda partidária apenas ofereceu-lhe a oportunidade para, fazendo-nos reverter a um estágio anterior à Constituição de 1988, tentar barrá-la. O verdadeiro contraste do ministério de “homens brancos velhos” de Temer não é o gabinete de Dilma, em que negros e mulheres tinham alguma visibilidade e pouquíssimo poder; é o movimento secundarista, que expõe o atual momento político como um golpe supremacista e gerontocrático contra o futuro.
A guerra de verdade é para defender esta promessa, garantir-lhe o espaço para respirar e crescer. Mas a fim de que se possa reunir a força necessária para pôr limite a uma classe política girando em torno de si mesma, aqueles que pretenderem mobilizá-la precisam entender que as pessoas não sairão às ruas para defender este ou aquele partido, político profissional ou camiseta. Em tempos de desconfiança, poucos estão dispostos a seguir quem pareça menos interessado no sucesso da luta do que no capital político a ser auferido com ela.
A luta agora não é para defender uma identidade ou projeto; ela é para defender direitos
Pelo contrário, é preciso reconhecer aquilo que esta desconfiança tem de potente e saudável – a lúcida certeza de que nosso sistema político está quebrado –, de modo a canalizá-la para a luta pela defesa e expansão de direitos. É preciso, ainda, parar de tratar a repulsa à corrupção como se esta nunca fosse mais que uma máscara do conservadorismo e voltar a reconhecê-la pelo que tem de legítimo. É preciso, por último, abandonar o autismo político que tantas vezes nega a existência da crise como se esta fosse um mero artifício retórico e ocupar o discurso do ajuste “por dentro”, numa espécie de “uso não-neoliberal da doutrina do choque”: não apenas se opondo aos retrocessos propostos, mas defendendo aqueles ajustes que teriam efeitos redistributivos, como uma reforma tributária progressiva e a taxação de dividendos.
A luta agora não é para defender uma identidade ou projeto; ela é para defender direitos. Mais que isso: ela tem de ser uma coisa e não a outra; quem insistir na primeira estará inevitavelmente prejudicando a segunda. Nesta sexta, uma manifestação em São Paulo convoca contra os cortes na saúde e na educação. É de se torcer que, à medida em que a Blitzkrieg governista comece a se mover, protestos deste tipo se multipliquem.
Rodrigo Nunes é professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio. É autor de Organisation of the Organisationless. Collective Action After Networks (Londres: Mute/PML Books, 2014).
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