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Alunos do lado de fora: como a escola Amorim Lima virou referência no país

Aulas ao ar livre, salas multisseriadas, roteiro de estudos flexível e pais na gestão de atividades culturais. Conheça o case de sucesso da escola municipal de SP

Alunos da Amorim Lima em aula no pátio externo da escola
Alunos da Amorim Lima em aula no pátio externo da escolaLilo Clareto

Por fora, a escola municipal Desembargador Amorim Lima, localizada na Vila Gomes, na Zona Oeste de São Paulo, se parece com uma instituição pública de ensino qualquer. A arquitetura tradicional de muros altos e de portões de ferro que isolam alunos e administração escolar do resto da cidade. Mas basta circular pelos corredores para abandonar essa primeira impressão. Grande parte das aulas ocorre ao ar livre, e não dentro da classe. Crianças pequenas praticam capoeira, ao som do berimbau que o professor de artes toca, a poucos metros de distância de outra roda de alunos, mais velhos, que participam de uma aula no jardim. Mesmo quando estão apenas brincando, os estudantes são instigados a aprender: duas crianças fugitivas, que permaneceram no clima do recreio após o sinal, são “resgatadas” de uma árvore por uma professora. E um inusitado batismo das corujas de pelúcia virou uma breve aula sobre a vida das aves noturnas de rapina. Alguns pais circulam livremente pelos corredores e participam de atividades extracurriculares, como organização de festas e bazares, ao mesmo tempo em que seus filhos estudam.

As salas de aula também estão longe do imaginário trivial, de carteiras enfileiradas e professores que meramente transmitem conhecimento. A lousa nesta escola não passa de um objeto decorativo na parede, reflexo de um passado distante. Alunos de séries diferentes sentam juntos no mesmo grupo e ficam sob a tutoria de professores de matérias diferentes, que se revezam de mesa em mesa para tirar dúvidas. São os alunos que escolhem o que vão estudar na semana.

Justamente por ser pouco comum no Brasil, o método de ensino da Amorim Lima ingressou para o Mapa da Inovação e Criatividade do Ministério da Educação. Em dezembro do ano passado, a pasta divulgou o resultado desse mapeamento feito pela primeira vez em todo o país, que elegeu 178 instituições de ensino, entre ONGs, escolas públicas e privadas, como modelos a serem replicados por todo o sistema. Na cidade de São Paulo, sete instituições públicas de ensino foram chanceladas como inovadoras pelo MEC, e a Amorim Lima é uma delas. No Brasil, existem mais de 200.000 escolas.

Muro do pátio interno da escola estampa a arte dos alunos. Crianças também são responsáveis por cuidar das plantas.
Muro do pátio interno da escola estampa a arte dos alunos. Crianças também são responsáveis por cuidar das plantas.Lilo Clareto

O Mapa da Inovação surgiu para disseminar estratégias educativas pelo país com potencial de elevar a qualidade do ensino, levando em conta a forma com a qual os alunos se relacionam com o conteúdo no século XXI. Segundo Natacha Costa, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz e uma das integrantes do grupo de trabalho do MEC responsável pelo projeto, uma escola inovadora responde a cinco critérios: gestão democrática, currículo inovador, ambiente de aprendizado diferenciado, incentivo ao protagonismo do aluno e compartilhamento de práticas com outras instituições.

"O mapa é importante porque traz referências de qualidade para outras instituições de ensino.Para que os gestores consigam formular e materializar projetos mais inovadores e eficientes", afirma Natacha. Ao todo, mais de 680 escolas e ONGs se inscreveram no Mapa da Inovação, do MEC.

No caso da escola Amorim Lima, o destaque criativo está no projeto pedagógico, que dá autonomia aos alunos no processo de aprendizagem. Neste modelo de escola, os estudantes gerenciam o conteúdo que querem aprender na semana, dentro do roteiro padrão de suas séries e sob a orientação de um professor tutor. “Quando eu não sei, eu pergunto para o amigo do lado, que já estudou o meu roteiro em outros anos. Se ele não sabe, levantamos a mão e pedimos ajuda para o tutor”, conta Maya, enquanto me apresenta, ao lado da amiga Irene, todos os cantos da escola. As duas têm 10 anos e estão na 5ª série. Estudam na Amorim Lima desde a primeira.

Crianças na aula de artes, no pátio interno da escola
Crianças na aula de artes, no pátio interno da escolaLilo Clareto

“As aulas são muito flexíveis. Podemos montar um roteiro até fora dos muros da escola, relacionado ao conteúdo da semana”, conta a professora Lilian Regina Ianishi, que tem 20 anos de carreira e seis de Amorim Lima. Um exemplo foi a aula de botânica no Parque Villa-Lobos, registrada até pelo Facebook da escola, alimentado todos os dias pela secretaria e por um grupo de pais de alunos.

Para a professora, a relação com os alunos é de “mediação” do conhecimento, um processo que lhe tira do pedestal hierárquico de mestre, mero transmissor de informação, para uma posição mais humana e colaborativa. “Sou formada em matemática, mas acabo tendo de sanar dúvidas de português, geografia. Claro que eu não sei tudo. Por isso, quando um aluno me pergunta e eu não sei responder, vamos juntos pesquisar no computador ou na biblioteca. O legal desse método é que acabamos construindo o conhecimento junto com o aluno. É uma troca”, explica. Mas as grades flexíveis de aula não significam que as avaliações são mais brandas. “Há cobrança sim, mas fazemos de uma forma que respeita o tempo de aprendizado de cada aluno, que não o sufoca ou constrange. A escola não pode ser um ambiente causador de aflições”, destaca a professora.

Os roteiros ficam armazenados num sistema de computador. Cada missão cumprida é registrada, assim como aquelas por fazer. “Quando a gente termina, pintamos o roteiro no computador e mostramos para o professor”, explica a aluna Maya. Os roteiros podem ser acessados por qualquer dispositivo que tenha acesso à internet, o que viabiliza o acompanhamento das atividades pelos pais. Mas a participação dos pais transcende o acompanhamento dos estudos dos filhos. Eles também atuam dentro dos muros da escola, organizando atividades extracurriculares, como aulas de artes, dança e música. Também organizam eventos, como festas, para arrecadar fundos para a instituição.

Aluna escolhe livro da biblioteca.
Aluna escolhe livro da biblioteca.Lilo Clareto

Comunidade na escola

Foram os pais, inclusive, que motivaram a Amorim Lima a mudar radicalmente de plano pedagógico em 2004. Segundo conta a diretora Ana Elisa Siqueira, há 21 anos à frente da instituição, muitos pais começaram a permanecer na escola junto com os filhos pequenos para evitar que fossem vítima de violência cometida por outros alunos mais velhos, adolescentes conhecidos pela comunidade como “problemas”, envolvidos com atividades criminosas. “Os pais começaram a entrar na escola para vigiar os filhos no recreio. Com o tempo, foram se organizando em grupos e acabaram desenvolvendo outras atividades, como brincadeiras e oficinas culturais depois das aulas e eventos para levantar recursos para a escola”, conta. Dentro dos muros, eles passaram a enxergar os problemas de perto, desde a excessiva falta de funcionários até a limpeza das salas. “Os pais passaram a participar politicamente das decisões da escola, por meio de Conselhos, e a partir de então, chegamos à conclusão de que era necessário reinventar nosso projeto pedagógico, que permitisse de fato mais envolvimento da comunidade”, complementa Ana Elisa.

Como inspiração, a Amorim Lima escolheu um colégio modelo que se tornou referência mundial em educação, a Escola da Ponte, em Portugal. Em 1970, a instituição portuguesa havia implementado um projeto pedagógico conhecido como "escola democrática", conceito criado pelo pedagogo francês Celestin Freinet - fonte da qual beberam construtivistas brasileiros famosos, como Paulo Freire. Essa metodologia entrou para o modelo educativo da Amorim Lima em 2004, começando pelas turmas do primeiro e quinto anos, finais de ciclos escolares. Dois anos depois, todos os alunos estavam sob o mesmo método.

Ana Elisa Siqueira, há 20 anos na direção da Amorim Lima
Ana Elisa Siqueira, há 20 anos na direção da Amorim LimaLilo Clareto

Na sala da diretora, alguns troféus e prêmios das olimpíadas nacionais de matemática e física adornam a estante e ilustram o emblemático sistema de ensino. Também o ingresso de alunos da Amorim Lima em universidades federais e escolas técnicas renomadas servem de vitrine para o modelo. Mesmo com todas as práticas inovadoras, no entanto, o Índice de Desenvolvimento da Escola Básica (IDEB) da Amorim Lima segue a média das escolas públicas do município de São Paulo: 4,8 para o quarto e quinto ano e 4,6 para a oitava e nona série. A nota máxima do IDEB é 10.

Os frutos de um projeto pedagógico como o da Amorim Lima, na visão de Ana Elisa, não são tão mensuráveis assim. “A ideia desse modelo é de trazer a comunidade para a escola, elevar a autonomia das crianças, o senso de coletividade e de responsabilidade, lições que transcendem a sala de aula e servem de base para toda a vida”, conta a diretora. O mesmo vale para os tutores. “O ensino solidário traz benefícios para os professores. Antes, eles estavam sozinhos na sala. Hoje, podem atuar em conjunto, trocar experiências de uma forma muito benéfica para os alunos”, complementa.

Aos poucos os pais procuram por modelos de ensino que fogem do tradicional. A fila de espera por uma vaga na Amorim Lima é grande e, entre os 800 alunos inscritos atualmente, 200 vêm de outras comunidades, algumas muito distantes. “Tem um aluno que vem todos os dias do Pico do Jaraguá porque o pai faz questão que ele estude aqui”, afirma. Na prefeitura de São Paulo, os pais não têm muita margem para escolher onde os filhos vão estudar. As matrículas são feitas em um sistema único, que distribui os alunos por proximidade das escolas disponíveis. Nas últimas etapas da matrícula é possível o remanejamento para alguma instituição de ensino de preferência, caso exista vaga. “Essas 200 vagas vieram de desistências, portanto. O nosso método de ensino é conhecido por muitos, mas nem todos acham que é o melhor para seus filhos, pois o modelo é muito diferente daquele no qual eles aprenderam”, pondera a diretora.

Pais organizam Bazar com peças doadas pela comunidade para arrecadar dinheiro para a escola
Pais organizam Bazar com peças doadas pela comunidade para arrecadar dinheiro para a escolaLilo Clareto

Em um país tão diverso quanto o Brasil, replicar práticas inovadoras, sejam elas inspiradas em modelos internacionais ou nacionais, não é tarefa fácil. "As escolas são grandes, cada região do país tem uma característica diferente, existem muitas áreas de vulnerabilidade e tudo isso exige demais dos gestores e dos professores na hora de desenvolverem um projeto pedagógico próprio, capaz de atender suas particularidades", destaca Natacha, uma das responsáveis pelo Mapa da Inovação do MEC. "Apesar de todas as dificuldades, existem ideias muito bacanas e criativas. Cada uma delas está promovendo inovações importantes todos os dias", complementa.

Com a turbulência política na qual vive o país, que culminou no afastamento da presidenta Dilma Rousseff e na nomeação de novos ministros, o andamento do Mapa estava incerto. Mais recentemente, contudo, o Sesc Nacional assumiu o projeto. O Sesc está sob a direção de Helena Singer, que foi assessora especial do MEC e presidente do grupo de trabalho do Mapa da Inovação.

Crianças do primeiro ciclo escolar em aula
Crianças do primeiro ciclo escolar em aulaLilo Clareto

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