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Coluna
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O estupro político

Sempre que a classe política usa a força contra os mais fracos, está cometendo um estupro moral coletivo

Protesto contra a violência contra a mulher em Brasília, no dia 29 de maio.
Protesto contra a violência contra a mulher em Brasília, no dia 29 de maio.UESLEI MARCELINO (REUTERS)

Da vergonha do estupro sexual já se escreveu tudo, com motivo da tragédia sofrida pela adolescente do Rio nas mãos de um pelotão de machos violentos.

Existe, entretanto, outro tipo de estupro, que não deve ser esquecido neste momento, e que é vivido pelo Brasil. Suas vítimas não são unicamente as mulheres, mas milhões de cidadãos.

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É a violência imposta pela classe política à parte mais fraca da sociedade, que se sente uma vítima impotente diante das suas corrupções e atropelos.

A mulher, na nossa sociedade machista, é, real e simbolicamente, objeto de violência – e não só sexual –, vítima dos prejuízos atávicos que, desde as cavernas, a considera inferior e submissa ao poder masculino.

Existem, entretanto, outras categorias de pessoas igualmente violentadas física e moralmente fora da esfera sexual.

A palavra estupro procede do latim stuprum, que significa desonra, vergonha pública. No sentido jurídico, simboliza “emprego da força contra alguém mais fraco”, compreendida a violência sexual, mas não só. Na raiz indo-europeia, estuprar significa golpear.

Se estupro, originalmente, indica a força exercida contra alguém mais fraco, sempre que a classe política, através de suas instituições, usa a força contra os marginalizados está cometendo um estupro moral coletivo.

Nesse sentido, todas as feridas sociais produzidas pelas crises econômicas, as violências policiais, geralmente contra pobres e negros, as mentiras que enganam a boa fé das pessoas humildes e a corrupção que impede melhoras na educação, na saúde e na cultura são também um estupro.

São um estupro o esbanjamento e os privilégios dos governantes perante os olhos de famílias que, mesmo trabalhando duro, não conseguem terminar o mês sem se endividar, nem podem oferecer a seus filhos uma formação que os prepare para um futuro melhor que o vivido por seus pais.

São vítimas de estupro os milhões de desempregados, os jovens sem futuro, as mulheres que, mesmo quando mais preparadas que os homens, ganham sempre menos que eles.

Etimologicamente, estupro significa também “vergonha pública”. Nesse sentido, hoje poderíamos dizer que a grande massa da sociedade deste país está sofrendo um estupro coletivo, graças ao espetáculo que oferecem seus políticos e governantes, que parecem se mover não para melhorar as condições de vida dos que mais sofrem o açoite da crise, e sim para se manter em seus cargos, para se salvar dos tribunais que lhes pedem explicações, ou para crescer economicamente.

O escândalo do estupro coletivo e indecente da adolescente do Rio foi rechaçado com estupor e indignação por uma sociedade que está amadurecendo no respeito e na defesa dos direitos humanos.

Isso deveria servir também de alerta para dizer não a esse outro estupro moral e coletivo ao qual as práticas políticas machistas das velhas panelinhas de caciques, sem distinção de ideologias, condenam o tecido mais frágil da sociedade.

O estupro moral, social e político pode, às vezes, doer e até matar, tanto ou mais que o da carne.

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