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Uma aula com o professor Sérgio Moro

O EL PAÍS esteve na Universidade Federal do Paraná, onde o juiz é professor

Sérgio Moro, em São no último dia 29.
Sérgio Moro, em São no último dia 29.Rovena Rosa (Agência Brasil)

Segunda-feira, dia 4 de abril, 20h50. Centenas de curitibanos se concentram diante da Universidade Federal do Paraná, na praça Santos Andrade de Curitiba, para acompanhar através de dois telões um ato de professores de Direito e alunos a favor do juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato e pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Trata-se de uma resposta a uma manifestação contrária que se celebrou duas semanas antes, na qual chegaram a chamar Moro de fascista. Enquanto estão ali, mobilizados diante da imensa escadaria que leva ao acesso principal do edifício de arquitetura neoclássica, sustentado por seis colunas circulares gigantes, brancas e impolutas, o próprio Moro entra por um acesso lateral da universidade. Dirige-se a passos lentos, acompanhado por uns quatro seguranças, a um corredor do primeiro andar. Chega em silêncio e, com os olhos fixos no celular, espera junto à porta da sala na qual, às 21h em ponto, iniciará a sua aula de Direito processual penal para os alunos do 4º período da graduação de Direito — e para o EL PAÍS, que entrou de forma anônima.

Para alguns simpatizantes que estavam dentro da universidade durante o ato, sua chegada é uma oportunidade de tirar algumas fotos, ainda que à distância. Moro, no entanto, continua com os olhos fixos no celular, com a cara fechada. Ao cruzar a porta de madeira e cumprimentar o seu colega que está de saída, deixa para trás a sua condição de juiz herói indiscutível, ao menos para parte da nação, para assumir aquela que é sua segunda função, mas não por isso menos nobre: a de um discreto professor universitário do Paraná de 43 anos. Sua devoção pela sala de aula pode ser tanta que ao ser nomeado assessor da ministra do STF Rosa Weber, em 2012, ele resolveu brigar na Justiça com a universidade na tentativa de compatibilizar suas tarefas docentes e seu novo posto.

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Na sala de aula, ele caminha pelas fileiras de mesas azuis claras até chegar ao tablado onde está a sua. Senta-se em cima do tampo, com as pernas abertas e as mãos entrelaçadas. Faz-se silêncio. O que se escuta agora é apenas a voz de Moro, com seu forte sotaque do interior do Paraná. Ainda não é o professor quem está falando, mas sim a figura pública. “Agradeço a manifestação, só que não posso participar… Sou juiz e temos uma série de limitações sobre o que podemos falar ou fazer. Então poderia ficar um pouco esquisito. Essa era a razão da minha ausência”, justifica. E continua: “Sobre a manifestação que teve há duas semanas... Não sei quem participou ou não participou. Cada um tem suas preferências partidárias, ideológicas”, afirma.  “Agora, o que a gente tem colocado de maneira muito clara, ao menos a minha opinião é essa, é que uma coisa é uma questão de Justiça, de Direito, e outra coisa é uma questão de política.”

Moro acaba de entrar na seara mais sensível do atual momento brasileiro, quando a Justiça invadiu — e embaralhou — a política através da Lava Jato. Quando autorizou no mês passado a divulgação dos grampos do ex-presidente Lula, sobretudo a polêmica conversa com a presidenta Dilma, que tem foro privilegiado, recebeu uma série de críticas do mundo jurídico e teve que se retratar com o STF. “Se o que a gente decide, o que a gente faz nos processos, tem consequências políticas, não é por isso que você vai deixar de decidir de maneira correta. A pretensão do juiz é sempre tentar fazer a coisa correta segundo a lei. Se alguns interpretam como sendo uma questão política, paciência... Não é essa a minha perspectiva”.

Prédio da Universidade Federal do Paraná.
Prédio da Universidade Federal do Paraná.F. Betim

Em seguida, Moro destaca que as pessoas têm o direito de reclamar, mas pondera que fica "um pouco chateado quando a coisa se encaminha para a ofensa”. Para ele, há uma certa turbulência que vai passar. “No que depender de mim, vocês não vão ouvir um discurso ofensivo… Mas também não vão ouvir um discurso de vítima. Estou fazendo o meu trabalho apenas. Claro que a gente fica chateado com algumas ofensas, mas enfim... Segue-se a adiante”.

Visto de perto, o porte do temido juiz de Curitiba está longe de ser de um super herói clássico. Ao contrário das fotos que normalmente estampam as camisetas de seus seguidores, nas quais sempre aparece com um olhar fixo no horizonte como se fosse o próprio Clark Kent, o professor Moro tem um porte médio e uma certa barriga saliente — excesso de trabalho? — que o paletó preto não disfarça. A camisa branca meio amassada, com o colarinho aberto e a gravata preta afrouxada no final do expediente na Justiça Federal do Paraná terminam de compor o seu visual.

Depois das considerações iniciais, atípica segundo alguns estudantes, Moro assume seu papel de professor e inicia sua aula. O tema é Direito ao silêncio e os alunos têm de entregar uma redação de duas páginas sobre o assunto. Só que mais uma vez ele pede licença para fazer um parêntesis, dessa vez mais longo, para abordar um de seus assuntos conhecidamente preferidos: a Operação Mãos Limpas da Itália, tema da palestra na qual esteve em São Paulo na semana anterior.

Moro faz um resumo histórico da alternância de poder entre a Democracia Cristã e o Partido Socialista que perdurou do fim da Segunda Guerra Mundial até o início dos anos de 1990, quando a operação revelou um quadro sistêmico de pagamento de propina. “Mas a partir de 1994, a Itália passou a aprovar uma série de leis para limitar os trabalhos da Mãos Limpas e evitar acusações, diminuir penas e prazos de prescrição… Durante a Copa de 1994 nos Estados Unidos, enquanto o país estava parado para ver a semifinal com a Bulgária, eles aprovaram o fim da prisão preventiva para uma série de crimes, entre eles contra a administração pública. O resultado foi a soltura de várias pessoas. O Governo mostrou que não estava do lado das investigações”, explica.

A intervenção de Moro ganha ares de alerta, num momento em que o Congresso brasileiro também se movimenta discretamente ao redor de projetos que podem vir a dificultar a investigação de poderosos. “O sistema político italiano revidou e a democracia não foi suficientemente forte para evitar essa mudança de quadro. Gosto de falar sobre Mãos Limpas, já que não posso dizer tudo o que penso sobre o caso de atualmente (risos). Mas as pessoas podem fazer um paralelo.”

Ao longo da aula, Moro chama a atenção para um detalhe que também se repete aqui de modo tropicalizado. “Lá os magistrados eram tachados de comunistas, porque o partido mais preservado foi justamente o comunista. E os mais atingidos foram os de centro-direita ou direita. É uma questão óbvia: os partidos que estavam no poder foram os mais atingidos".

Havia a expectativa de que a Lava Jato atingiria a todos os partidos por igual. No entanto, Moro tem sido acusado de tucano e de parcial porque as investigações da Lava Jato atingem, principalmente, o PT, o PP e o PMDB, mas ainda pouco o PSDB. Sua linha de atuação passou a ser vista como partidária e ele deixou de ser unanimidade nacional — ainda que conserve um elevadíssimo índice de apoio. O juiz foi criticado, ainda, por ter comparecido em Curitiba a um evento promovido pelo LIDE, organização empresarial de João Dória Jr., candidato tucano a prefeito em São Paulo.

Um polêmico vídeo do grupo humorístico Porta dos Fundos desta semana, por exemplo, é bastante revelador com relação a esta desconfiança que setores da sociedade têm sobre a Lava Jato. Nele, um agente da Polícia Federal interroga um deputado que começa a contar falcatruas de pessoas ligadas ao PSDB, mas o policial não dá importância. Só está atento aos detalhes que o delator tem sobre o ex-presidente Lula. As enérgicas ações de Moro para levantar informações do ex-mandatário — a condução coercitiva do dia 4 de março, e a divulgação dos grampos com conversas privadas do duas semanas depois — reforçaram essa leitura.

Aos alunos, Moro continua a discorrer sobre a Mãos Limpas e ali se compreende a sua visão. “Esse negócio de política e justiça, de esquerda e direita, não tem nada a ver com esse assunto. Se você é um juiz e tem uma pessoa que é acusada de um crime, então você vai avaliar as leis e as provas. Não importa se ela é de esquerda, de direita, de centro, baixa, alta, gorda, magra", explica. "Alguma dúvida?".

Após mais de meia hora de explicação, já não há mais nenhuma referência sobre a Lava Jato ou a Mãos Limpas. Moro retoma rapidamente a aula anterior sobre presunção de inocência e depois emenda no tema do dia, sobre o direito ao silêncio. Faz uma explanação histórica do assunto e explica sua origem e significado. Depois, pede para que os alunos expliquem suas conclusões após escrever a redação em casa. O silêncio é quebrado e o debate, aberto.

A aula transcorre normalmente, e os presentes nem se lembram que estão diante do magistrado que virou capa de revista e matéria obrigatória nos telejornais. Há estudantes que anotam cada palavra dita pelo professor no caderno ou no computador; já outros ficam com a cabeça encostada na carteira ou escrevendo no WhatsApp.

Moro caminha de um lado para o outro da sala. Para. Passa a palavra para um aluno, apoia a mão no queixo e olha atentamente. Parece escutar com atenção. Outras vezes, anota no quadro negro ou se senta sobre a sua mesa para falar. Didático e coloquial, seu tom de voz praticamente não se altera durante quase uma hora e meia aula. Quando olha para baixo, mirando alguma anotação  — sua aula é cheia de referências bibliográficas —, seu olhos miúdos parece que se fecham. “Semana que vem não poderei estar por causa de uma palestra em Chicago. Prometo que é a última em dia de aula”, finaliza.

Enquanto metade da turma se dirige a ele para tirar dúvidas, a outra desce a escadaria do edifício neoclássico. “É uma relação hierárquica, de professor e aluno. Ele abre a aula para participação, é acessível, tira dúvidas, responde e-mail, repõe as aulas que precisa faltar… Mas ele tem uma ideia fechada sobre os temas. Quando o aluno fala, ele rebate. Existe o certo e o errado para ele. Mas o direito não é uma ciência exata, e com o debate você vai construindo uma conclusão”, opina um aluno já do lado de fora da universidade. “Por outro lado, ele sempre contextualiza muito. Puxa da história, compara com a jurisprudência de outro país. Então nada é por acaso. Ele te faz entender o porquê das coisas”, pondera.

Já sua colega explica que os estudantes estão acostumados com professores que possuem uma função pública — “como o [Edson] Fachin antes de se tornar ministro do STF” — e diz não entender o alvoroço em torno de sua pessoa. “Estamos acostumados já com protestos contra ou a favor diante da faculdade toda a semana…”.

É raro, na verdade, que fale sobre a Lava Jato durante a aula. “Hoje foi uma exceção”, conta. “É claro que falamos a respeito, como todo mundo. Tem alunos que apoiam, outros que divergem. Mas a relação na sala de aula é normal”, conclui, enquanto espera na escadaria de acesso ao edifício.

São 22h30 da noite e já não há ninguém na praça Santos Andrade. Moro, que diz não gostar da fama, já pode sair sem ser perturbado.

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