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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Quem vai salvar a polícia da política?

Governantes instrumentalizam instituição para fazer o trabalho sujo contra grupos e reivindicações que os desagradam

Manifestantes levantam braços ante a polícia na Paulista.
Manifestantes levantam braços ante a polícia na Paulista.PAULO WHITAKER (REUTERS)
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A democracia brasileira herdou uma polícia que não joga em seu favor. Para quem ainda não conhecia este fato, os últimos três anos ofereceram uma demonstração muito visível. Afinal, sua violência gratuita se tornou mais palpável: das periferias e favelas se expandiu para os centros urbanos a partir de manifestações políticas de massa. Esses eventos ensinaram muito sobre a polícia que não deveríamos ter, e deram mais clareza para as reformas há anos recomendadas por estudiosos. Desmilitarização e unificação seriam o norte de uma mudança para melhor. Propostas de emenda constitucional nessa direção dormitam no Congresso sob o triste silêncio de lideranças políticas.

Há muito, portanto, que se fazer. Antes que a política legislativa consiga dar esse passo mais ousado, contudo, mudanças institucionais e comportamentais de menor envergadura poderiam evitar a violência que assistimos nessa semana em São Paulo (e que se repetem em tantas capitais do Brasil). Esses ajustes estão ao alcance do Governo estadual, com o auxílio de instituições como judiciário e o Ministério Público.

Foi interessante acompanhar, nos últimos dias, a disputa pela narrativa mais verossímil dos fatos que ocorreram na av. Paulista. Dessa disputa participaram manifestantes, jornalistas, PMs e seus superiores – governador e secretário de segurança. Alguns presenciaram o evento direto da avenida, com seus cinco sentidos; outros, de seus gabinetes e estúdios. Interpretações se multiplicaram, mas há fatos incontroversos, documentados em vídeos, depoimentos e fichas hospitalares. Houve pânico, correria e cerco policial a pedestres que não participavam do protesto e não dispunham de vias de fuga. Houve bomba, gás e cassetete. Dezenas de feridos.

A esses fatos, autoridades reagiram por uma perversa técnica de ilusionismo retórico. Emitem frases professorais, que até parecem fazer sentido em abstrato. Disfarçam os fatos e embarcam no senso comum. Contrapostas às imagens das ruas, as frases tornam-se cínicas e tragicômicas.

O descompasso entre os fatos, as normas e as falas das autoridades é estarrecedor e nos idiotiza

O governador Geraldo Alckmin, por exemplo, recorreu outra vez à repetição compulsiva de uma mesma ideia. Não varia muito seu repertório. Conjuga o antigo valor da “lei e ordem” e o respeito a direitos, uma curiosa combinação. Logo após os protestos, declarou: “A PM agiu e continuará agindo para garantir a liberdade de manifestação e o direito de ir e vir. Vandalismo é crime. Não será tolerado.” Em outro veículo, disse: “O que nós precisamos fazer é garantir a liberdade de expressão e a segurança da população.” Mais tarde, reclamou do “vandalismo seletivo”, e convidou manifestantes a protestar também contra a inflação ou contra o aumento da energia elétrica. Desviou do tema que ali importava – a atuação policial sob seu comando – e questionou a motivação mesma do movimento. Insinuou que seriam manifestações “políticas”, uma de suas acusações preferidas a quem dele discorda.

A Secretaria de Segurança, em comunicado oficial, tentou tranquilizar a população ao assegurar que a polícia agiria “absolutamente dentro da legalidade”. E argumentou com palavras sonoras: “Não é possível transformar democracia em anarquia, vandalismo e banditismo.”

Que as autoridades se apressem em defender e acusar antes de apurar, que a atuação policial não seja vista como problema a merecer correção e autocrítica, que juristas ainda sejam entrevistados para recitar velhos lugares comuns como a “proteção do patrimônio” ou o “direito de ir e vir”, sem o devido cuidado para avaliar os acontecimentos registrados, ofendem a sensibilidade e integridade de quem ali esteve. O descompasso entre os fatos, as normas e as falas é estarrecedor e nos idiotiza.

Número tão alto de feridos não é mero acidente, efeito colateral ou parte do risco ordinário de um protesto. Não decorre do perfil abusivo do policial A ou B. A violência a que assistimos não se confunde com abusos isolados que “merecem ser devidamente apurados”, para usar o burocratês diversionista. A polícia brutaliza centenas e invoca eventuais lixos queimados, vitrines estilhaçadas ou pedras atiradas como provas suficientes para justificar qualquer uso de suas armas.

Mesmo que o vandalismo justificasse a violência da resposta policial, a correlação entre os feridos e os “vândalos” tem sido, na melhor das hipóteses, mal demonstrada. A polícia deve, claro, reprimir atos de vandalismo na medida em que não comprometa a segurança geral. Nesses casos, não é uma escolha, mas um dever, e um dever sob limites. Se não for possível fazer a prevenção imediata do dano, há que se investigar, buscar restituição e punição. Se, ao final, não se localizar o causador do dano, o poder público arcará com as despesas. Custo baixo para se proteger liberdade tão elementar quanto a de protestar.

Entre polícia e manifestantes, há um abismo. Não se trata de um conflito entre iguais. Não há paridade de armas, de capacidades, de papéis

Temos sido instados a perguntar se a polícia pode fazer uso da força em protestos. Uma armadilha binária que só admite o sim ou o não como resposta. Em geral não se pergunta quando, como e com qual intensidade. Como se a eventual transgressão de um lado autorizasse qualquer reação policial. O diabo, no entanto, está no detalhe: precisamos discutir o que é uso aceitável da força, sua proporcionalidade e seu gradualismo (tal como preveem diretrizes internacionais de policiamento urbano). Essas perguntas nos foram interditadas pela má vontade de lidar com nuances e particularidades dos fatos.

Entre polícia e manifestantes, há um abismo. Não se trata de um conflito entre iguais. Não há paridade de armas, de capacidades, de papéis. Não se pode esperar equilíbrio psicológico e frieza de manifestante. Da polícia, não se pode esperar nada menos que isso.

Controlar a discricionariedade da polícia no varejo de suas interações cotidianas com os cidadãos é das missões mais espinhosas no Estado de Direito. Aplicar à polícia o ideal do “Governo das leis e não dos homens”, em particular num evento tão escorregadio e imprevisível quanto protestos, é uma empreitada jurídica altamente falível. São zonas em que o direito mais rápido evapora e o arbítrio predomina se não tivermos instituições bem preparadas para monitorar comportamentos, detectar desvios, e admitir erros (que são inevitáveis).

A polícia brasileira está despreparada e pede socorro. Foi encurralada entre dois extremos do conflito: governantes que a instrumentalizam para fazer o trabalho sujo contra grupos e reivindicações que os desagradam; manifestantes que gritam nas ruas, com toda intensidade e carga emocional que os protestos multitudinários despertam. Quando a polícia for salva da baixa política e reinventada a partir de parâmetros democráticos, black blocs serão o menor dos seus problemas.

Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da USP. Doutor em ciência política pela USP. Doutor em direito pela Universidade de Edimburgo.

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