A vida em uma escola ocupada que resiste a fechar as portas em São Paulo
Reportagem de EL PAÍS entra em um dos colégios tomados em protesto contra reforma
O cheiro do almoço vinha da cozinha da escola estadual Silvio Xavier Antunes, no bairro do Piqueri, na zona norte de São Paulo. “A comida do João é boa demais”, diz o estudante do terceiro ano Gabriel Azevedo, 16. O "cozinheiro" João Pedro, 17, fazia o almoço: arroz e salsicha refogada. Como Gabriel, João ocupa desde a sexta-feira passada o colégio que deve fechar as portas por decisão da chamada reorganização escolar proposta pelo Governo Geraldo Alckmin.
Além de fazer as vezes de cozinheiro, João trabalha no laboratório de informática da escola como estagiário. Ele tem duas irmãs que cursam o ensino fundamental ali. O pai, estuda no programa de Ensino de Jovens e Adultos (EJA), no período noturno. No ano que vem, a madrasta faria o curso com o pai — se a escola não fosse fechar. “Ainda não nos informaram para onde as minhas irmãs irão”, disse ele. Hoje, estudam na Xavier 882 alunos, dos ensinos fundamental e médio, distribuídos nos três períodos. Ali, o aluno mais novo tem 10 anos e o mais velho é uma senhora de 77 anos que cursa o EJA. As dez salas da escola eram utilizadas até a sexta-feira, quando começou a ocupação dos alunos, parte da onda que tomou, até a publicação desta reportagem, ao menos 65 colégios na Grande São Paulo (confira a lista atualizada neste link).
A resistência que cresceu dia a dia desde a semana passada aumenta a pressão sobre o Governo estadual que anunciou, em meados de setembro deste ano, a reorganização escolar para alunos e professores que já começa a valer no ano que vem. Um redesenho com potencial para mexer nas vidas e trajetos cotidianos de um milhão de alunos e suas famílias. Os argumentos principais da gestão é que a falta de demanda e ampliação da quantidade de escolas de ciclo único (só ensino fundamental ou médio em cada unidade), que teriam, em tese, rendimento melhor. Especialistas dizem que não é consenso essa avaliação e apontam a falta de diálogo como um estopim da crise. Das 5.147 escolas estaduais de São Paulo, 93 serão disponibilizadas para que se transformem em escolas municipais ou técnicas, ou para outras funções (uma das escolas-alvo anunciadas acabou saindo da lista). Não há, porém, garantias de que os prédios serão transformados em instituições ou se serão simplesmente fechados. A Silvio Xavier Antunes, uma senhora escola de 46 anos, está nessa incerta situação.
Dafine Damasceno Cavalcanti, aluna do 3º ano da escola, é quem guia a reportagem pela Silvio Xavier ocupada. É um prédio equipado com laboratórios de química e de informática, biblioteca, refeitório, ventiladores em todas as salas, equipamentos multimídia. Não apresenta nenhuma parede riscada ou pixada. “Cerca de 80% dos alunos estão participando, de alguma maneira, da ocupação”, disse. Ali, eles cozinham, mantêm a escola limpa, realizam atividades como jogos e exibições de filmes, e decidem, absolutamente tudo, em assembleia. Inclusive se a reportagem poderia ou não entrar. “Decidimos que você pode entrar. Mas só às 10h45. Só poderá ficar meia hora e não poderá tirar fotografia”, disse Dafine à reportagem. Todas as condições foram atendidas.
Não há líderes neste movimento. Os estudantes realizam intercâmbios entre escolas para entender como as ocupações estão sendo feitas em outros lugares. Dafine explica que procuraram o Movimento Passe Livre (MPL), de mobilização pelo transporte, para pegar algumas dicas sobre as ocupações das escolas. Pais e alunos estão apoiando o movimento, mas os alunos frisam que somente os estudantes são os protagonistas deste ato. De maneira geral, agradecem o apoio que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) está prestando, mas poucos aceitam que o movimento ocupe as escolas com os alunos: “Os protagonistas somos nós. Se eles vierem aqui, não os deixaremos entrar”, disse Dafine.
Guilherme Boulos, um dos dirigentes do MTST, afirma que algumas comunidades procuraram o movimento para pedir ajuda nas ocupações. “Fomos procurados por alunos e, essencialmente, pais de alunos”, disse. “Não é razoável que se questionem quem está ocupando. Muitos dos que estão questionando deveriam estar ocupando também”.
Na escola José Lins do Rêgo, no Jardim Ângela, na zona sul, os militantes do MTST acabaram saindo da ocupação, depois de um tumulto entre militantes, alunos, professores e a Polícia Militar. "Eles ficaram aqui sábado e domingo, nos deram dicas, nos apoiaram, mas decidimos em conjunto que eles sairiam no domingo", explicou a estudante Natalia Oliveira.
Queda de braço
A atração de movimentos sociais críticos do governador Alckmin à onda de ocupações contribui para o momento de queda de braço entre estudantes e a Secretaria de Educação. O secretário da pasta, Herman Voorwald, afirma que não vai negociar com "outras entidades que não sejam formadas pelos estudantes". Apesar do movimento crescente, Voorwald mantém um discurso duro. Afirma que o Governo não cogita a possibilidade de adiar ou mesmo suspender a reforma. “A política pública não está em discussão”, disse. Afirmou que as escolas ocupadas estão "invadidas" e que "o processo de reorganização foi extremamente democrático". Também disse que todas as escolas ocupadas receberão pedido de reintegração de posse. "É inevitável", disse. “Não há outro caminho".
Ao menos duas escolas já receberam o pedido de reintegração de posse: A Fernão Dias, no bairro nobre de São Paulo, e a Diadema, na região metropolitana. Em ambos os casos, o pedido foi suspenso. Na tarde desta quinta-feira, uma audiência pública será realizada para debater o que ocorrerá com as escolas ocupadas em relação à Justiça.
Na porta da Silvio Xavier, há uma mostra de que o problema do Governo pode não ser tão simples de resolver e que houve falhas de comunicação sobre as mudanças. A onda de ocupações tem a simpatia e até o apoio logístico de alguns pais. Alguns deles e professores faziam vigília na escola do Piqueri nesta terça-feira. Do portão pra dentro, só entram os alunos, mas o gerente comercial Eduardo Araújo se reveza com a esposa para acompanhar a ocupação. Ele tem um filho cursando o ensino fundamental e outro no ensino médio nesta escola. Cada um vai para um colégio diferente. “Eu moro aqui ao lado. A gente sai de manhã para trabalhar e sabe que nossos filhos vão caminhar 400 metros e chegarão na escola”, diz. “Com a mudança, não faço ideia de como vou fazer, pois as escolas para onde cada um deles vai estão em direções opostas a quase dois quilômetros de distância de casa.”
Segundo Paulo Roberto Ferreira de Andrade, professor de física e matemática que leciona na Silvio Xavier, os alunos do ensino fundamental serão transferidos para a escola Augusto Ribeiro de Carvalho, no bairro vizinho, Nossa Senhora do Ó, a 1,7 quilômetro de distância da Xavier. Já os alunos do ensino médio irão para a escola Professor Mariano de Oliveira, a 1,6 quilômetro de distância. A informação foi confirmada pela secretaria de Educação, que também disse que os alunos do EJA serão transferidos para essas mesmas escolas.
De toda forma, as dúvidas persistem e aparecem em cartazes e faixas nos arredores da escola. "Nem sei para onde meu filho vai”, disse Romildo Pires, pai de um aluno do ensino médio da Silvio Xavier. “Aqui, todo mundo se conhece. Por que querem fechar a escola? É isso que a gente quer entender.”
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