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Coluna
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O menino que queria ser castigado para que o chamassem por seu nome

Somos um nome, que nos puseram com amor antes de nascer, por trás do qual se esconde um mundo

Movimento no aeroporto de Brasília no feriado de 12 de outubro.
Movimento no aeroporto de Brasília no feriado de 12 de outubro.Marcelo Camargo (Agência Brasil)

“Boa viagem, senhor Juan”, disse-me o funcionário da Avianca enquanto recolhia meu cartão de embarque, no avião que me levaria de São Paulo ao Rio.

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Senti uma mistura de estranheza e satisfação ao mesmo tempo. Faz 50 anos que viajo voando, percorri várias vezes o mundo, e essa foi a primeira vez em que não era mais um do amontoado que entra na fila em um avião.

Durante o voo pensei na importância de que nos chamem por nosso nome. Vieram-me à memória os que passam a vida e se vão sem que quase ninguém pronuncie o seu. É como se deixassem de existir como pessoa para se transformarem em objeto.

Lembrei-me de Pietro, o menino abandonado que queria ser castigado para poder escutar seu nome. Nunca senti nada tão humilhante e cruel como o número escrito sobre a pele dos judeus deportados aos campos de concentração. Eram despojados do nome e da dignidade para se tornarem um frio algarismo. Assim, devia ser mais fácil para os verdugos os tratarem pior que os animais, aos quais costumam chamar pelo nome.

Não são poucos os pobres que também sofrem de algum modo essa humilhação, conhecidos que são apenas por um apelido. Curiosamente, seus pais costumam lhes dar vários nomes.

O primeiro conselho que um psicólogo dá a quem tem de lidar com um sequestrador é que pronuncie o nome dele

Há famílias ou empregadores que nunca chamam pelo nome os empregados ou empregadas que trabalham com eles. É um reconhecimento consciente ou não de que são mais peças do que pessoas. Existem em função do trabalho que realizam: são a cozinheira, o jardineiro, a faxineira, o padeiro ou a secretária. Anulamos o seu nome e, com ele, sua identidade.

Vivemos em um mundo cada vez mais massificado. Viajamos, trabalhamos, comemos, nos divertimos, em massa. E nesse torvelinho, no qual somos só uma peça a mais de um grupo, chegamos a esquecer que somos um nome que nossos pais nos puseram antes de nascermos, com amor. Um nome por trás do qual se esconde um mundo inteiro.

Nas línguas semitas, o nome adquire uma distinção especial, porque nele está incluído o que se espera da pessoa. É como um programa de vida.

Tão dura, tão terrível é às vezes a necessidade de que nosso nome seja pronunciado ou apareça escrito em algum lugar que há pessoas anônimas cuja patologia de ausência as arrasta a realizar um crime no qual sacrificam a própria vida, como em alguns atentados terroristas, com a única finalidade de que sua identidade brilhe à luz do mundo

A psicologia humana é complexa e os que analisam essa incrível e fantástica relojoaria do cérebro descobrem a cada dia novos mistérios no comportamento das pessoas e nas consequências que o fato de se sentir anônimo pode produzir.

Quando uma criança pequena começa a compreender que tem um nome, sorri ao escutá-lo. Começa a tomar consciência de que é diferente das crianças que têm outros nomes. Saem do anonimato do rebanho para passar a ter uma personalidade própria.

O primeiro conselho que um psicólogo dá a quem tem de lidar com um sequestrador é que pronuncie o nome dele com calor humano.

Meu primeiro trabalho como psicólogo, em meus anos de juventude, foi em Roma, em um colégio com cem crianças abandonadas. Tentei fazer com que o diretor eliminasse os castigos. Nossa surpresa foi que aqueles meninos queriam continuar sendo castigados. Um deles nos explicou por quê: “A única vez que ouço pronunciarem meu nome é quando me chamam pelo alto-falante para ir à sala do diretor para receber o aviso de um castigo”. O pior castigo para eles era ser esquecido.

De vez em quando, o único telefone que existia no colégio para o caso de um parente desejar telefonar para um menino amanhecia danificado. Alguém o destruía à noite. Pusemos vigilância e descobrimos o culpado. Tinha 12 anos. Chamava-se Pietro. Estava ali havia nove anos. Nunca ninguém tinha ido visitá-lo e era um dos que defendiam os castigos. Conversei com ele para tentar saber por que estragava o telefone. “Porque não serve para mim. Ninguém me telefona”, respondeu seco. Eu lhe perguntei se deixaria de quebrá-lo se alguém lhe telefonasse. “Acontece que ninguém nunca vai me telefonar”

Naquela noite, com o apoio do diretor, ao chegar em casa telefonei para ele. Ao ouvir seu nome pelo alto-falante foi correndo até o telefone, disseram-me. “Olá, Pedro, é Juan. A partir de hoje vou te telefonar todos os dias para te desejar boa noite.” Não soube dizer nenhuma só palavra. Continuei lhe telefonando. Nunca voltou a quebrar o aparelho. No colégio trocávamos um olhar cúmplice e ele até conseguia esboçar um sorriso.

Hoje acabo de ler que uma pesquisa no Brasil mostra que 55% dos cidadãos preferem comprar em lojas pequenas onde são chamados pelo nome. Pelo que parece, não só os empregados, mas também os clientes, sentem a necessidade de ser alguém em vez de um consumidor sem nome.

Como nos grandes conflitos da história, que muitas vezes explodem por coisas que nos parecem banais, também as grandes transformações morais e sociais podem ter início com algo em aparência tão insignificante como se sentir reconhecido pelo próprio nome.

Custa tanto?

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