Os sabores de Tiradentes
A cidade histórica de Minas Gerais abriga a principal festa brasileira da alta gastronomia
Nem Paris, nem Tóquio, nem Lima. Se você quer se aventurar pelas capitais gastronômicas do mundo, esqueça, ao menos por um tempo, o lugar-comum, o destino gourmet que há seis anos encabeça o guia Michelin e até a nova queridinha dos chefs. Para comer bem e com sofisticação sem – pasme – esvaziar os bolsos, basta você aterrissar em Tiradentes, no interior mineiro.
Para o brasileiro, pouca novidade há no fato de que Minas Gerais é um berço da boa comida. A surpresa, para alguns, talvez resida no fato de que essa pequenina cidade histórica, de bela arquitetura colonial preservada, oferece mais do que pratos caseiros, feitos à lenha e com ingredientes frescos da região (como se isso fosse pouco). Palco da Inconfidência Mineira – levante da então capitania de Minas Gerais contra o domínio português –, Tiradentes é hoje, de fato e de direito, uma capital brasileira da alta gastronomia, enraizada nas Gerais graças à existência do Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes. Some-se a ele a insubstituível hospitalidade mineira.
Só este ano, foram programadas mais de 180 atividades gastronômicas e 83 atrações culturais no marco do festival, divididas entre jantares especiais, cursos, degustações, cozinhas ao vivo, shows de música e obras de teatro. Tudo isso em meio a bares e restaurantes de primeira, com portas abertas o ano todo. Tiradentes, com 7.000 habitantes que vivem num agradável clima de calor durante o dia e frio leve à noite, a quase 1.000 metros de altura, tem hoje nada menos do que sete restaurantes estrelados pelo Guia Quatro Rodas – referência em seu gênero no Brasil. Talento esse que foi sendo cozinhado em fogo brando, até a criação do evento, 18 anos atrás, e que atingiu maturidade com a associação dele com uma expedição gastronômica que busca mapear os sabores do Brasil – o projeto Fartura Gastronomia.
Basta dar uma volta pela cidade – este ano, o festival acontece de 21 a 30 de agosto – para comprovar. Ruelas de paralelepípedo e praças antigas rodeadas de Igrejas e casas de paredes brancas com bordas coloridas transbordam de pessoas famintas, com taças de vinho ou copos de cerveja na mão. São, em grande parte, pessoas de classe média, em busca de descanso e adoradoras do comer bem. Depois de tomar um típico café da manhã local com pão de queijo, broas, bolos, geleias e café com leite nas 150 pousadas da cidade, como elas podem estar com fome? Não estão. O que buscam é vivenciar um ritual gastronômico autêntico, com pratos saborosos e decorados, harmonizados com a bebida ideal, propiciada pelos chefs mais badalados do momento – nacionais e internacionais.
A ideia do evento surge da “mente inquieta”, como ele mesmo define, do cineasta Ralph Justino, hoje prefeito da cidade, mas que à época da criação do festival era seu secretário de turismo e cultura. Ele anteviu o que muita gente só hoje vê: que comida é veículo de cultura, cultura move o turismo, e turismo é negócio. “Apesar de bem conservada, Tiradentes, entre as cidades históricas de Minas, era a menos conhecida. Chamamos o grupo Balcão [de teatro] para encenar uma peça na praça central da cidade e ganhamos as manchetes de cadernos culturais. Aí criamos a Mostra de Cinema de Tiradentes, hoje uma referência no calendário de festivais de audiovisual do país, e logo o festival de gastronomia, que é o primeiro do Brasil”, conta Justino. O lugar, que já era cenário constante de filmes e novelas, fez assim sua veia cultural, em que a boa comida ressaltou pela união de talentos locais com o prestígio de chefs do resto do Brasil e do mundo. “Acho que isso tem muito a ver com a comida mineira, que junto com a baiana e a paraense, é a que mais personalidade tem no país”.
Depois de uma década e meia, o festival, segundo o prefeito, precisava de renovação. Essa foi a porta de entrada do empresário Rodrigo Ferraz, que à época tinha deixado o mercado financeiro para se dedicar aos restaurantes que abriu em Belo Horizonte, para assumir o evento e redesenhá-lo com base em seu projeto de conhecer e catalogar ingredientes, produtores e cozinheiros brasileiros de norte a sul. “Nosso objetivo com o Fartura é mostrar o Brasil que pouca gente conhece, de uma forma democrática e com o conceito do prazer à mesa. Já visitamos 22 estados, percorremos 60.000 quilômetros e armamos uma rede de produtores e chefs que enriquecem nossa programação aqui em Tiradentes”, conta Ferraz, que assumiu inteiramente o festival tiradentino. Neste ano, ele convocou, com a ajuda do curador do evento, Rusty Marcellini, chefs famosos como Roberta Sudbrack (dona do restaurante que leva seu nome no Rio e recentemente eleita a melhor da América Latina), o Rodrigo Oliveira (do paulistano Mocotó), Leo Paixão (do Glouton, em Belo Horizonte), Thiago Castanho (do Remanso do Bosque, em Belém do Pará) e o francês Thomas Troigros (do Olympe, do Rio).
Ainda que os pratos sejam irresistíveis, Tiradentes oferece mais aos visitantes. Famosa pela produção de móveis de madeira de demolição (abundante por lá graças aos casarios e a outras construções antigas) e pelo artesanato requintado, a cidade deixou para trás os tempos em que andava esquecida e hoje vive cheia de turistas que movimentam 95% da economia local. Apesar da tranquilidade transbordante do lugar, elas sempre têm o que fazer: no calendário de eventos local, não há um só mês vazio, da elogiada mostra de cinema ao famoso festival gastronômico, se somam encontros como o Tiradentes em Cena (de teatro), o Foto em pauta (de fotografia) e o Vinho&Jazz – que, nas palavras de Ralph Justino, “está bombando”. Assim, se você perdeu a festa gastronômica deste ano, fique atento a essas outras possibilidades ou simplesmente pegue o próximo transporte para Tiradentes e deixe-se acolher por sua mineirice. “Só o mineiro tem a paciência de esperar a comida pegar sabor. Ele abre as portas de casa, procura os ingredientes em seu próprio quintal e oferece a verdadeira slow food, que é a mineira”, diz o chef Leo Paixão.
Com esse tempo amável na cabeça, confira abaixo algumas sugestões de passeio em Tiradentes.
O alambique de cachaça mais antigo do Brasil
Faça uma visita à mais antiga fazenda de produção de cachaça do Brasil, a Século XVIII, cujo alambique não parou de funcionar desde 1755. Construído alguns anos antes, em 1717, o lugar produz uma cachaça artesanal premiada, capaz de fazer os adoradores da bebida levitarem (sensorialmente). O atual proprietário Nando Chaves, oitava geração de produtores da bebida, sabe muito de cachaça, de história e de simpatia. É um atrativo à parte da fazenda, que ainda por cima é propriedade descendentes do próprio alferes Tiradentes.
O autêntico queijo mineiro
Esqueça, ao menos enquanto estiver em Minas Gerais, daquele queijo mineiro caro e sem sabor que você encontra nos supermercados. Aproveite a visita a Tiradentes e faça uma parada na Fábrica de Queijo Catauá, que há tempos pratica a receita desse queijo que, declarado pela Unesco, é Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Sua pequena e preciosa produção de cerca de 35 queijos ao mês, maturados sem pressa com leite ordenhado ali mesmo, enriquece alguns pratos de chefs locais e distribuída a poucos e bons pontos de venda nacionais. Mas nada como degustá-lo ali, à mesa dos anfitriões, que oferecem cafezinho feito na hora, broa de milho, pães, geleias, compotas e, claro, pão de queijo. Tudo radicalmente artesanal.
A mesa tradicional
Típico, em Minas Gerais, é que a mesa esteja cheia. Isto posto, há restaurantes típicos em Tiradentes que certamente agradarão aqueles que buscam tradicional culinária mineira, de pratos fartos. Tutu de feijão, feijão tropeiro, frango com quiabo, costelinha, frango com ora-pro-nobis (folha de um verde intenso que é conhecida pela alta concentração de proteína), doces caseiros, cachaças e mais é o que oferece a Taverna Padre Toledo, um dos restaurantes locais mais antigos. Fica à rua direita, 202, no centro histórico.
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