“Somos minoria em Brasília porque o poder econômico prefere os homens”
Para deputada, há na política uma cultura de que a capacidade da mulher é menor
Era pouco depois das 13h na última quinta-feira e a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) já havia se reunido com o vice-presidente Michel Temer (PMDB), dado uma entrevista para a TV Câmara e aguardava uma ligação do petista José Guimaraes, líder do governo da Câmara. Ela discutia o apoio da base aliada ao pacote fiscal de Dilma Rousseff (PT), cuja votação de seu último ponto está previsto para ser votado nesta quarta-feira. Única líder de partido mulher na Câmara, Feghali assume um papel de protagonista pouco usual para as deputadas em Brasília, onde "há a maior concentração de gravatas por metro quadrado" do país, brinca. Das 503 vagas existentes, apenas 50 não são ocupadas por homens (10% delas, em proporção arredondada para mais).
Na última semana, com o objetivo de mudar esse cenário, as deputadas tentaram aprovar a cota para mulheres, uma emenda à Constituição que garantiria a elas ter, em 12 anos, 15% das vagas. Mas, por uma diferença de apenas 15 votos, a proposta foi rejeitada. Para ela, a derrota se deve a uma cultura machista, que acredita que a mulher é menos capaz e mais emotiva do que o homem, mas também ao menor apoio que os partidos dão às candidaturas femininas.
Pergunta. Muitas deputadas consideraram uma vitória conseguir reverter tantos votos em um Congresso tão conservador. E você?
Resposta. De fato, o esforço feito pela bancada feminina acabou mudando muitos votos. Agora, para isso, nós tivemos que recuar na proposta bastante. A proposta era de 30%, passou a ser 15%, assim mesmo de forma progressiva e limitando a três legislaturas. Hoje temos 10% de deputadas, mas muitos Estados não tem nenhuma. Hoje, quando dizemos 15%, com no mínimo uma por Estado, já ampliamos a bancada de imediato. Já teríamos, no mínimo, mais 50% de parlamentares mulheres aqui. Essa proposta mais recuada e com intensa pressão sobre os deputados fez com que a maioria da Câmara votasse a favor. Mas não atingiu os 308 votos necessários. Estão nos faltando 15. Nossa expectativa é que o Senado aprove a proposta e que no retorno para a Câmara a gente consiga virar esses votos e garantir a cota de mulheres na Constituição.
P. Por que existe essa resistência?
R. Toda vez que se discute disputa por espaço de poder nós temos dificuldades. A Lei Maria da Penha nós conseguimos aprovar aqui por unanimidade. O feminicídio foi aprovado por amplíssima maioria. Temas gerais das mulheres em geral têm passagem. Mas com dois temas nós temos dificuldades: um é a disputa de poder e, o outro, os direitos sexuais e reprodutivos.
P. Aborto?
R. E outras coisas também. A gente já teve dificuldade de discutir até planejamento familiar. Tocou nesse campo dos direitos reprodutivos e sexuais, temos dificuldade. E a disputa de poder também é um problema sempre. Eu sou a única líder de partido mulher. As comissões ficaram muito tempo sem nenhuma mulher presidindo. Depois, por quatro anos, só teve uma presidindo e agora tem duas. Ou seja, de 22 duas comissões, só duas são presididas por mulher. Mulher na mesa [diretora] é só suplente. Assim mesmo porque foi uma batalha e nós conseguimos aprovar a uma proposta que diz que tem que ter cota de mulheres na mesa. Relatoria de grandes temas é o que menos tem nas mãos das mulheres aqui. Eu brinco que o maior número de gravatas por metro quadrado é Brasília. Aqui, o poder é de fato masculino. Somos maioria na universidade, mas na hora do espaço de poder é uma disputa. Abrir esse espaço é sempre muito complicado. Eles sempre acham que uma a mais de nós é um a menos deles. Não é uma visão de sociedade. É uma disputa de gênero, um negócio terrível.
O poder econômico se vincula mais aos homens e a eleição é muito decidida pelo poder econômico. Por isso eles têm mais vantagem
P. E essa disputa de gênero tem um fundo machista?
R. Claro. Cultural, econômico... É opressão de classe, de gênero e econômica. Veja que até bem pouco tempo nem as mulheres votavam nas mulheres. A maioria ainda não vota ou seríamos a maioria aqui.
P. Muita gente contra a cota falou que as mulheres deveriam votar nas mulheres e, assim, uma cota não seria necessária. Por que tem que ter uma cota?
R. Tem que ter porque essa cultura tem que ser mudada na sociedade brasileira. Alguns fatos já foram nos favorecendo. O fato de ter uma presidenta mulher, ministras mulheres, governadoras mulheres. Mas essa semana mesmo eu ouvi aqui: 'Ah, é que mulher trabalha mais com a emoção do que com a cabeça, é mais frágil, tem muita sensibilidade'. Na hora de decidir poder, as pessoas pensam: 'Mas pera aí, a capacidade da mulher é menor'.
P. Mas há uma cota que obriga que os partidos tenham 30% das candidatas mulheres. Por que isso não refletiu num aumento grande de eleitas?
R. Tem um outro fator. Não só os partidos fazem chapas laranjas, em que de fato as mulheres não são candidatas de verdade, como também as mulheres não são, geralmente, vinculadas ao poder econômico. Se tiver um comerciante local e um candidato homem e outra mulher, ele dá o recurso para o candidato homem. O poder econômico opta pelos homens porque o homem tem a marca do poder. O poder econômico se vincula mais aos homens e a eleição é muito decidida pelo poder econômico. Por isso eles têm mais vantagem. E os partidos, na grande maioria, não dão nenhum tipo de recurso às candidaturas femininas. Nem no tempo de TV, nem na distribuição de recurso, nem na militância. É a mesma cultura.
P. Temos um Congresso bastante conservador e há uma dificuldade para aprovar pautas progressistas de uma forma geral. Como é possível levar essas pautas? A base do Governo está correta na articulação política?
R. Quando a pauta interessa ao Governo ele tem feito um esforço de dar uma maior solidez à sua base. Acho que ainda não conseguiu, mas já teve vitórias importantes. É uma base ainda fluída, depende de muitos fatores. Tem pautas que impactam determinados setores, como a bancada do agronegócio com assuntos de economia, ou a bancada evangélica com questões comportamentais do século 21 e assuntos de direitos humanos, que também desagradam a bancada da bala, que cresceu muito. A cada mudança de legislatura aqui, tem uma mudança de perfil. E nessa, particularmente, o poder econômico definiu muito. Mesmo os deputados jovens de idade, que poderiam ter a cabeça mais aberta, chegam com pensamentos que para nós são impactantes, com uma cabeça pragmática e fechada, do ponto de vista moral, comportamental, humano. É uma coisa que está chamando a atenção. São mais conservadores do que os que aqui já estavam. Com esse perfil, só tem um jeito: articular os deputados mais progressistas para criar uma agenda e um contraponto e isso nós começamos a fazer. E precisa da pressão de fora para dentro, não tem jeito. E uma pressão de fora que enfrente o senso comum, porque a grande mídia é, em muitas coisas, inimiga do avanço. Maioridade penal, por exemplo, há dois meses as reportagens são todas sobre crimes de menores. Se pega a exceção e faz dela a pauta do Jornal Nacional, de vários jornais. E a sociedade precisa reagir a isso. Para avançar a pauta progressista aqui temos que avançar do lado de fora, com uma plataforma, uma unidade política desse setor, porque se não unir não faz efeito.
P. E essa articulação de esquerda, mais progressista, conseguiria sustentar o Governo para fazer frente ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, por exemplo?
R. Acho que sim. Se o Governo e esse setor progressista não têm iniciativa da pauta, a pauta é feita pelo presidente da Câmara. E qual a possibilidade de se alterar uma pauta a ser votada? Por isso tem que ser uma articulação nossa e uma grande articulação do lado de fora.
P. Mas o Cunha é bastante hábil para costurar acordos. Seus críticos argumentam que ele usa chantagem... Conseguiu fazer com que o PCdoB votasse no sistema do distritão que ele queria ver aprovado...
R. Não foi bem chantagem. Ali foi uma tentativa de acordo que nós fizemos porque não tínhamos outra saída. Sempre fomos contra o distritão. Mas a gente fez um acordo para evitar aquilo que poderia ser o centro da reforma, que era a cláusula de restrição de barreira e impedir as associações partidárias. A gente achava que o distritão não passaria. Tínhamos essa avaliação, um mapa. Foi um risco calculado de votar o distritão e garantir que a reforma não se deslocasse centralmente para os assuntos restritivos da pluralidade partidária.
P. O tema da redução da maioridade penal é esse próximo grande tema de união da esquerda?
R. Sim. Aquela comissão foi escolhida a dedo, a bancada da bala toda lá. Foram 21 votos a favor e seis contrários. Qualquer argumento que você usasse seria 21 a seis. Não se movia um voto. Então, essa é a próxima pauta. A mais complexa. Estamos tentando reverter na votação do Plenário. Há uma proposta alternativa, que parte do PSDB, inclusive, que se acoplou, que é uma alternativa que vai pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e não pela Constituição. Se a gente conseguir fazer um amplo apoio em torno das alternativas pelo ECA a gente vai conseguir evitar mudar a Constituição.
P. É de sua autoria um projeto de lei que pretende taxar as grandes fortunas...
R. Sim, hoje a tributação no Brasil é regressiva. Quem é assalariado paga mais imposto do que quem tem mais riqueza. Nós temos que mudar a forma de tributação no Brasil. Mas uma reforma tributária ampla eu não vejo ambiente para votar agora. Então, nós deslocamos um dos temas, principalmente olhando para a situação da saúde brasileira hoje, e estamos concentrados em votar a taxação das grandes fortunas que seria uma contribuição rubricada na saúde. A maior parte dos líderes já aprovou até a urgência. É um tema que se discute no mundo todo, muitos avançam para essa pauta. Acho que essa seria uma pauta fundamental para o Brasil. E para o Governo sinalizar para a sociedade que o ajuste não precisa ser sobre os trabalhadores.
P. Boa parte do PT defende isso. Mas e o Governo? Porque o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, já disse que não vai adiantar nada...
R. Mas o Levy não é o Governo, né? Não vai adiantar nada? Essa Medida Provisória da taxação das grandes fortunas é mais do que o Projeto de Lei (PL) da desoneração vai economizar. A primeira vez que estudamos a matéria, há três anos, os dados oficiais da receita, a gente conseguiria extrair 14 bilhões de reais, que é mais do que o PL da desoneração, que é 12,5 bilhões. E a grande alíquota, o maior rendimento, viria de 997 brasileiros apenas. Menos de 1.000 pessoas que têm patrimônio acima de 150 milhões. Um cidadão desse paga para assistir a Copa do Mundo muito mais do que ele daria de tributo para a saúde brasileira. Hoje, se calcular todas as correções, dá mais de 20 bilhões só para a saúde. Não faz sentido a gente não conseguir. Já tem mais ministros do Governo defendendo. O ministro da Saúde já começou a defender. Numa conversa com a presidenta da República, ela disse que acha que é justo fazer a tributação progressiva, está pensando em como fazer. A gente vai ter que ganhar a opinião. Ontem, estávamos debatendo na reunião dos líderes e eles disseram que a taxação das grandes fortunas é justa. Eu não tenho muita expectativa que esse Congresso tenha abertura para isso. Ainda. Mas é um trabalho que vamos precisar fazer. Vamos tentar colocar para votar esse ano ainda.
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