O dia mais triste da minha vida
Não atinava ainda com a gratuidade da vida: o tempo, infinito, recomeçava a cada manhã
Até então haviam desaparecido gatos, cachorros, vizinhos. Estes mudavam de casa, de bairro, de cidade. Aqueles, de endereço, talvez; de dono, quem sabe. Não atinava ainda com a gratuidade da vida: o tempo, infinito, recomeçava a cada manhã. Meu corpo franzino, ignorando certezas, desbravava os espaços com a altivez dos puros de espírito – as únicas amarras, mas terríveis amarras, tonitruavam aos domingos entre as paredes da igreja de Santa Rita de Cássia, onde o monsenhor Solino descrevia, com pena hiper-realista, a sombria morada dos pecadores.
Para mim, aos sete anos, a metafísica dos ensinamentos religiosos confundia-se com a ética prática cotidiana. Obedecer as normas da convivência comunitária ultrapassava a mera exigência social, era caminhar em linha reta pelo estreito corredor dos mandamentos cristãos – infringir as regras, mais que submeter à extrema desonra do julgamento público, significava sujeitar à nossa própria consciência, palco em que não há possibilidade de atenuantes.
(Eis um exemplo: eu trabalhava num botequim próximo da minha casa. Passava lá a manhã vendendo pães, doces, ninharias. Um dia, varrendo as folhas caídas dos pés de amêndoa que sombreavam a rua, me deparei com uma cédula de um cruzeiro, com a estampa do Almirante Tamandaré. Não sei quanto valia, mas valia alguma coisa, ainda mais para mim, cujos bolsos desconheciam dinheiro. Em pânico, sem coragem para pegar a nota, que não me pertencia, me dirigi a um grupo de meninos, meus conhecidos do bairro, e comuniquei o achado. Um deles, o mais forte e valente, tomou meu braço com rudeza, e grunhiu: Se for mentira, te encho de pancada. Seguido pelos asseclas, abaixou-se junto ao lixo, catou a cédula, empurrou-me, falou qualquer coisa como otário, e saíram todos rumo ao centro da cidade em busca de guloseimas...)
Eu tomava lições de catequese com dona Eulália, baixinha, óculos grossos, sisuda, ranzinza, sempre vestida de preto, promotora de sua escrupulosa viuvez. As aulas nos preparavam para a primeira comunhão, cerimônia aguardada com ansiedade por nós e por nossas famílias, momento em que nos entronizávamos efetivamente nos umbrais do catolicismo. Corria o mês de maio, época em que as manhãs se entremostravam aos poucos, embuçadas pela cerração. Na véspera do dia tão vigiado, comprados roupa nova e sapatos, a cabeça da diretora, dona Jânua, surgiu na porta da sala, e, após pedir licença para a professora, dona Maria Cristina, mandou que a acompanhasse.
O irmão caçula da minha mãe, Olavo, havia sofrido um acidente estúpido e morrera de forma quase instantânea, deixando em dificuldades a mulher e uma cadeia de filhos pequenos. Tomamos um carro de praça e nos dirigimos a Rodeiro, a pequena colônia italiana de onde provínhamos. Confuso, observei de longe o tumulto do velório, a desolação na missa de corpo presente, a dor durante o cortejo da igreja ao cemitério, o desespero na hora da despedida final, a melancolia da volta para casa. A noite desabou sobre a cidade, e, por deferência, nem os cães ladravam, nem os saguis da praça São Sebastião guinchavam, nem as crianças resmungavam – até os galos adiaram a instauração da manhã.
Regressamos a Cataguases, retomamos a sanha das horas que se sucedem, inexoráveis. Perdida a celebração da eucaristia, apenas no ano seguinte poderia realizá-la novamente, o que me provocou profunda frustração, já que permanecia a interdição de experimentar a hóstia, veículo que viabilizava aos adultos o contato direto com aquele Deus que nós, crianças, somente adivinhávamos por trás do véu das coisas banais. Então, afinal, julho chegou. Minha mãe me colocou no ônibus da Viação Marotti, como em todas as férias, recomendou-me ao motorista e despachou-me para Rodeiro.
Eu costumava revezar as casas dos tios, uma noite aqui, outra ali, procurando a melhor maneira de despender minha soberania, que, por alguma razão improvável, pressagiava não duraria muito. Após os primeiros dias zanzando de um lado a outro, percebi que algo substantivo havia mudado. Um imenso e implacável desamparo nublava os olhos de todos, como se expiassem a culpa por continuar vivos ou purgassem aindignação pelo injusto desaparecimento daquele ente querido, caído quando ainda não havia percorrido nem metade da caminhada.
Só então compreendi, atônito que meu tio não havia sido guindado aos céus por um coro de anjos – mas sucumbira ao instante presente, para sempre. E agora me perguntava se todos aqueles adultos, que comungavam e rezavam e seguiam os mandamentos, acreditavam realmente que a morte marcava não o fim de tudo mas o começo da vida eterna, como aprendíamos no catecismo. Se acreditavam, por que o desespero? Por que o horror? Por que a revolta?
Não fiz a primeira comunhão...
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