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O resgate do Estado de bem-estar

O legado mais negativo da crise, para Garrido, é um modelo social europeu ferido de morte

Joaquín Estefanía
Manifestação de fevereiro em Atenas em apoio ao Governo grego.
Manifestação de fevereiro em Atenas em apoio ao Governo grego.AFP

As metáforas para definir o que nos aconteceu nos últimos sete anos se tornam mais sofisticadas. Durante muito tempo bastava falar de Grande Recessão, mas o conceito foi se tornando insuficiente. Da mesma forma que Yanis Varoufakis, antes de ser famoso e ministro das Finanças do Governo grego, a chamou de “Minotauro global”, López Garrido analisa como “a idade do gelo”, uma etapa fria e dura que não constituirá um mero intervalo entre duas eras de normalidade e afetará, principalmente, o hemisfério norte. Durante a primitiva Idade do Gelo, extensas regiões da Terra ficaram cobertas pelo gelo, o clima esfriou em todo o planeta e o nível dos mares e dos rios diminuiu, já que a maior parte congelou. Na atual idade do gelo, congelou, acima de tudo, o dinheiro, o alimento da economia da nossa era: congelaram as artérias do sistema, os bancos, e, em especial, congelou o coração da economia, sua pulsação produtiva e trabalhista, e entrou em um período de sono invernal, freando o crescimento e o emprego.

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Agora que muito timidamente começam a surgir os sintomas do descongelamento, o principal é estabelecer o legado de tal glaciação econômica. Essa herança tem três grandes componentes: um poder financeiro incontrolável, um modelo social ferido gravemente e um Estado sem poder tributário, que é o eixo do poder político. O primeiro dos três parece um paradoxo: tendo todos os problemas começado no coração financeiro do mundo, Wall Street, e tendo contagiado o resto do sistema com abusos, irregularidades e roubos, quem primeiro sai, com mais poder do que nunca, com as mesmas formas de agir e com o orgulho de quem se considera superior, é o próprio sistema financeiro, e o faz com gestores parecidos (se não os mesmos) depois de ter usado para sua normalização mais e mais dinheiro público; ou seja, de todos os cidadãos.

O modelo social não é idêntico no mundo todo. Em muitas partes, nem sequer existe. Nem mesmo na velha Europa, que é a zona onde mais se desenvolveu, é comum aos diferentes países. Mas havia sim um denominador que se repetia: o alto nível de proteção social, ajudas especiais aos setores mais vulneráveis da sociedade, uma posição beligerante dos poderes públicos sobre o emprego, uma presença determinante destes poderes na definição de uma autêntica política social, que não se deixava ao arbítrio do mercado, e um papel crucial dos interlocutores sociais. Durante essa crise, tudo isso foi enfraquecido intencionalmente; primeiro, deslegitimando (contribui para a ineficácia, tira potencial de crescimento, gerou privilégios) e, a seguir, cortando as vias de financiamento, tornando mais frágil.

E aqui chegamos ao último componente da herança da crise, a verdadeira obsessão de López Garrido nesse livro e em seus artigos na imprensa, o núcleo duro de seu pensamento: a destruição do sistema fiscal através da redução de impostos, a sonegação fiscal, a evasão fiscal legal, a multiplicação dos paraísos fiscais, a aceitação de uma taxação mínima a muitas multinacionais, em uma espécie de dumping fiscal sistemático. Para o autor desse texto, foram sendo substituídos os impostos (que são pagos segundo o poder aquisitivo e a propriedade dos contribuintes, e que seriam devolvidos em forma de contrapartidas) por dívida pública (que afeta todos os cidadãos e se devolve a quem empresta o dinheiro: os bancos). Isso ativou o mecanismo pelo qual essa crise, que começou sendo do capitalismo, acabou se tornado uma crise da dívida (o outro mecanismo é a socialização das perdas, de modo que a gigantesca dívida privada, o “ópio das classes médias”, passou a ser dívida pública).

O outro ponto incisivo do autor é o papel da Europa nesse período, em especial em relação aos EUA. López Garrido analisa como as dificuldades econômicas atingiram a União Europeia e o bloco não foi capaz de acelerar os tempos por falta de vontade política, e porque nem todos os países se saíram tão mal, porque alguns eram credores (os mais fortes, com a Alemanha à frente) e outros eram devedores (os países do sul).

A austeridade tem sido uma política que expressa macroeconomicamente a luta de classes que, como disse Warren Buffet, está sendo ganha de goleada pelos seus, ou seja, os mais poderosos. O principal papel dos intelectuais e analistas é buscar os responsáveis pelo ocorrido e desmascará-los, porque, se não, além de cornos, espancados: os cidadãos, além de serem os grandes pagadores dos abusos provenientes das instituições financeiras e de outros centros de poder, serão os culpados por “terem vivido acima de suas possibilidades”. Um duplo saque.

La edad de hielo (A Idade do Gelo). Diego López Garrido. RBA. Barcelona, 2014. 447 páginas.

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