A fantasia inunda São Paulo
Realidade e ficção se confundem no ‘Guia Fantástico de São Paulo’ O livro retrata a cidade com um caráter mais lúdico e humano
Sob o Minhocão, o famoso viaduto no centro de São Paulo, passam vias que os carros congestionam todos os dias. Sobre a construção, também. Barulhento e cinza, reflete bem o espírito de uma cidade que se esqueceu daqueles que vivem nela. No entanto, na mente de Ángela León, alguns balanços se soltam da parte superior do viaduto e as crianças brincam neles. Imaginou a cena quando passou por ali, e a transportou para o papel. Com mais de 100 ilustrações em branco e preto, em seu Guia Fantástico de São Paulo, esta designer industrial de 27 anos transformou a realidade da cidade para deixá-la mais próxima de seus habitantes.
“Ao retratar de forma positiva e lúdica lugares degradados, é mais fácil ver seu potencial e esquecer os preconceitos”, explica León, de Madri, e que está no Brasil há quatro anos. “São Paulo pode ser bastante hostil e não tem uma beleza tão evidente, por isso que comecei a desenhar, em parte, para me familiarizar com a cidade e me adaptar.”
O que nasceu como um hobby, se transformou num projeto com data marcada: 11 de março de 2015. Dia em que acaba o prazo para arrecadar 22.000 reais através de uma campanha de crowdfunding para poder publicar o guia. A embaixada espanhola no Brasil também apoiou o guia com uma verba de 5.000 reais. Dois dias antes do prazo, o dinheiro já havia sido arrecadado, as ilustrações estão prontas; e os textos que as acompanham também. A partir de quarta-feira, o guia ganhará forma.
O livro representa alguns elementos da cidade como são e, outros, transformados. Não explica, no entanto, o que é verdade e o que não é. “Como os falsos documentários, é um guia falso”, diz sua criadora. Qualquer pessoa poderia pensar que os cinemas que León retrata nas calçadas são reais, mas na verdade são um reflexo dos que existiam nos anos cinquenta. As piscinas nos terraços dos edifícios ou as bibliotecas nas árvores do parque Augusta — que está sob ameaça devido à especulação imobiliária — são mais fáceis de identificar como surreais.
Ficção e realidade chegaram a se mesclar em vários momentos graças às ilustrações de León. A jovem e o grupo Basurama, com o qual colabora, conseguiram instalar balanços no Minhocão, como parte do festival do movimento Baixo Centro, em 2013. O sucesso da iniciativa e sua difusão na mídia levaram a Secretaria da Cultura da prefeitura de São Paulo a repeti-la. Foi assim na Virada Cultural desse mesmo ano, e em uma escala maior: no Viaduto do Chá, um dos mais antigos da cidade.
Mais impressionante ainda pode ser uma piscina soterrada. Nos anos setenta, o Governo construiu galerias sob a Avenida Paulista para aliviar o tráfego e deixar a superfície como zona de lazer reservada aos pedestres. Mas o projeto nunca foi concluído. Quando León descobriu que havia passagens sem utilização sob a Avenida Paulista, uma coisa ficou muito clara: a maneira perfeita de combater o calor e utilizar esse espaço era criar uma piscina. Embora esta piscina ainda não tenha se materializado, a do Minhocão conseguiu ser concretizada e, graças à arquiteta e artista Luana Geiger e a outra campanha de crowdfunding, esteve disponível durante 24 horas.
Como estrangeira, há aspectos cotidianos da cidade que valorizo mais do que as pessoas daqui
A água é um tema recorrente no livro. Não apenas as piscinas: “São Paulo está cheia de rios. Há 50 ou 60 anos, as pessoas se banhavam, andavam de barco... Agora a maioria está enterrada ou contaminada”, afirma León, e acrescenta: “É preciso que a relação da cidade com os rios melhore. A crise de água deixou isso ainda mais evidente. É incrível que num clima subtropical e numa cidade cheia de rios, falte água nas casas”.
O livro também mostra alguns detalhes dos interiores das casas, com o costume de pendurar redes na janela da sala. “Como estrangeira, acredito que há aspectos cotidianos da cidade que valorizo mais do que as pessoas daqui”, diz León. A jovem destaca que o livro não é, na realidade, um guia, mas “uma revisão do imaginário de São Paulo, inspirada nas iniciativas dos cidadãos que surgiram nos últimos anos”, para melhorar a cidade. Precisamente, o objetivo do guia é fazer de São Paulo um lugar mais confortável e divertido.
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