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DE MAR A MAR
Coluna
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Saudades dos gringos

A América Latina fornece matérias-primas à China, o gigante asiático protagonista de uma nova revolução industrial

Carlos Pagni

A aproximação econômica com a China é talvez o fenômeno mais relevante da América Latina nos últimos 10 anos. A região se reencontra com o papel que havia encarnado no final do século XIX: o de abastecer com matérias-primas os protagonistas de uma revolução industrial. Na época eram os europeus. Agora, os chineses.

A última expressão desse processo foi a reunião ministerial da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) com o presidente chinês, Xi Jinping, nos dias 8 e 9 de janeiro em Pequim. Nesse encontro, a China repetiu o desenho da sua política para a África: também a América Latina será tratada como um bloco. Essa potência só identifica dois interlocutores individuais: os Estados Unidos e a Rússia. O resto do mundo é percebido como um mosaico de regiões. Naquela ocasião, a China prometeu emprestar 80 bilhões de dólares (234,5 bilhões de reais) em quatro anos. Como informou o EL PAÍS na sexta-feira, em 2014 Pequim transferiu 22 bilhões de dólares, mais que o BID e o Banco Mundial juntos. A região já deve 119 bilhões a esse país. Nos últimos meses, começou a cumprir-se a célebre sentença de Confúcio: “Um pouco de dinheiro evita as preocupações, mas muito dinheiro as atrai”.

Cerca de 90% das exportações da Venezuela para a China se limitam ao petróleo

Na Argentina, o Governo e a União Industrial estão protagonizando o conflito mais duro da década por causa de um convênio de cooperação assinado por Xi e Cristina Kirchner. Os empresários se queixam de que, em troca de financiamento, as companhias chinesas receberão contratos sem licitação. Os sindicatos também protestaram, porque essas firmas poderão importar mão de obra do seu país.

É a primeira vez que se abre uma grande discussão sobre os riscos da presença chinesa na América Latina. Também é a primeira vez que se assina esse tipo de contrato. O Congresso argentino autorizou o Executivo a estabelecer acordos específicos no setor energético, nuclear, ferroviário e militar. Os convênios foram redigidos, mas permanecem em segredo. Esse hermetismo é ainda mais suspeito porque a Sra. Kirchner negociou sob condições de grande fragilidade. Num momento em que a Argentina está sem acesso aos mercados de crédito, o ministro da Economia, Axel Kicillof, solicitou à China 3 bilhões de dólares para evitar uma crise monetária.

A polêmica entrou na campanha eleitoral. Os candidatos presidenciais da oposição negociam um documento no qual, entre outras concordâncias, se comprometem a revogar o acordo caso um deles seja eleito.

Essa segunda conquista da América empreendida pelos chineses enfrenta dificuldades também na Venezuela. Pequim financia a Revolução Bolivariana. A dívida com a China já é de 45 bilhões de dólares, saldada com 600.000 barris de petróleo por dia, um volume que cresce à medida que cai o preço do produto. Tal modelo de endividamento foi inaugurado por Rafael Correa, do Equador, país que embarca para a China 60% do petróleo bruto que produz.

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Nicolás Maduro não pôde renegociar o acordo porque a República Popular pediu em troca a mina de ouro Las Cristinas, avaliada em 32 bilhões de dólares. Como na Argentina, a oposição venezuelana recrimina o Governo por ter chegado a uma situação de urgência econômica que coloca o país de joelhos perante os chineses. O economista Ricardo Hausmann, por sua vez, culpou também a China. Em um artigo no Financial Times, lançou contra Pequim a recriminação tantas vezes feita ao Fundo Monetário Internacional: financiar um país em risco de moratória.

No México os sobressaltos foram outros. Enrique Peña Nieto licitou a construção de um trem-bala por 3,7 bilhões de dólares. Houve um só interessado, a China Railway Construction Co. (CRCC), associada à mexicana Teya. Bombardier, Alstom, Mitsubishi e Siemens preferiram se retirar da disputa.

A Teya pertence ao grupo Higa, em cujo nome está registrada a mansão da primeira-dama mexicana, Angélica Rivera. O escândalo relativo a esse imóvel afetou o projeto do trem-bala, que acabou sendo suspenso com o pretexto da crise no mercado petrolífero. Os chineses, indignados, ameaçam levar Peña Nieto aos tribunais.

A CRCC experimentou no México o mesmo que a Sinohydro na Argentina: para construir duas represas, associou-se a Lázaro Báez, suposto testa-de-ferro da família Kirchner, investigado por lavagem de dinheiro. Mas, em Buenos Aires, eles foram previdentes: apresentou-se também a chinesa Gezhouba, que venceu em parceria com a Electroingeniería, uma firma próxima a Carlos Zannini, principal colaborador de Cristina Kirchner.

A América Latina recebe mais dinheiro da China que do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento juntos

Na China, onde não há licitações, essas peculiares regras do jogo são aceitas com naturalidade. Os Governos populistas, por sua vez, preferem as relações econômicas interestatais. Sobretudo porque estas não estão subordinadas à ortodoxia econômica exigida pelos bancos de investimento. Esse relaxamento, que incentiva a corrupção, beneficia as empresas chinesas contra concorrentes que possuem padrões de transparência, trabalhistas e ambientais mais rigorosos.

A predileção pela China costuma vir disfarçada de ideologia. Pequim estaria oferecendo uma alternativa a Washington, em uma fantasiada segunda Guerra Fria. Essa interpretação mascara uma dinâmica que Dilma Rousseff costuma lamentar: a impossibilidade de competir com a indústria chinesa consolida a região como fornecedora de commodities. Cerca de 90% das exportações venezuelanas para a China se limitam ao petróleo; 70% das argentinas, à soja; 75% das brasileiras, a minérios e soja.

Esta primarização é outra razão que torna o desembarque oriental problemático. Mas os Governos nacionais e populares celebram a nova dependência em nome da soberania.

Na esquerda circulam, entretanto, outros diagnósticos. Há cinco anos, o chefe do BID, Luis Alberto Moreno, perguntou ao uruguaio José Mujica o que achava do avanço dos chineses. O ex-guerrilheiro respondeu: “Esses sim são bravos... Em quinze anos vamos estar com saudades dos gringos”.

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