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“A sociedade como um todo foi violentada pela ditadura”

Para o historiador Carlos Fico, é hora de Dilma cobrar retratação das Forças Armadas, como pediu explicitamente a Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final

Militares participam da segunda campanha na região do Araguaia, realizada pelo Exército em 1972.
Militares participam da segunda campanha na região do Araguaia, realizada pelo Exército em 1972.Acervo CNV

No dia em que o Estado brasileiro endossou pela primeira vez lista que expõe quase 400 nomes de acusados por violações de direitos humanos na ditadura (1964-1985), a atual cúpula militar do país foi a protagonista ausente.

Comandantes das Forças Armadas não compareceram à cerimônia de entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, nesta quarta, que cobrou explicitamente uma retratação da instituição e a punição dos violadores. O ministro Celso Amorim, sim.

A presidente Dilma Rousseff chorou e prometeu adotar as recomendações do documento, mas também condenou o "revanchismo" e defendeu a transição democrática “à nossa maneira” que incluiu “pactos” e acordos políticos, uma referência à Lei da Anistia.

Coube ao coordenador da comissão, Pedro Dallari, depois, ampliar o mal-estar, acusando as Forças Armadas de não haver colaborado com as investigações. Antes, ele havia elogiado o ex-chanceler e agora ministro da Defesa, Celso Amorim, um civil, pela “condução do relacionamento” entre militares e civis durante o processo.

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Problema Geracional

O cuidado de Dilma e do governo ao se referir aos militares, um setor beneficiado no governo atual com recursos para manutenção e rearmamento, é mais um capítulo do lento e longo processo de submeter as três forças armadas, Exército, Marinha e Aeronáutica, ao poder do civil no Brasil.

“Havia uma expectativa muito grande de que a comissão recomendasse a rediscussão da Lei da Anistia e ela não fez explicitamente e isso é frustrante. Posso intuir que isso se deva a pressões dos militares que estão muito incomodados com o relatório”, diz Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da UFRJ.

Fico, autor do livro Como eles agiam – Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política, defende que Dilma exija já a retratação e o pedido de perdão dos militares.

“A minha geração entende que os militares não passam de funcionários públicos uniformizados. Essa geração que nos antecede parece vê-los com alguma cautela. É muito importante que a presidente Dilma supere isso e determine que os comandantes militares se pronunciem como foi recomendado. É uma questão histórica e política e depende da presidente”, defende o historiador.

O professor da UFRJ minimiza a possibilidade de que uma eventual exigência de retratação da petista aos militares cause uma crise institucional. “Eu tenho entrevistado militares mais jovens. Um reconhecimento dos comandantes seria bem recebido pela oficialidade jovem.”

As questão é que as recomendações da comissão vão além do pedido de retratação. O relatório pede a retirada de condecorações dadas a acusados de violação e mudança de currículo das escolas militares, além do veto a qualquer celebração do golpe de 1964.

E a reação dos militares de alta patente da reserva já se fez sentir ainda em setembro, quando estrilaram porque o ministro Amorim arrancou dos militares das três forças documento onde eles, ao menos, diziam não ter como negar que houve violações de direitos humanos na ditadura.

Para Fico, a retratação e o pedido de perdão não seriam direcionados às 434 vítimas listadas pela comissão, mas à sociedade como um todo. “A contabilidade macabra do número de mortos, sobretudo os mortos que militavam na esquerda, não dá conta de ver o tipo de violência de outra natureza que se abateu sobre a sociedade de maneira geral. A sociedade brasileira como um todo foi violentada”, afirma Fico.

O historiador diz entender a opção da Comissão da Verdade de apurar apenas “violações graves” no período, mas pondera que, na prática, ela foi restritiva.

“Os órgãos de informações se espalhavam pelo Brasil inteiro. O serviço de espionagem chegou a ter 2.000 pessoas. Isso afetava o cotidiano de pessoas que nem sequer sabem disso. Os jovens, mas não só os jovens, teriam se mobilizado mais se soubessem que seu pai, seu avô, que não eram da luta armada tiveram um prejuízo dessa ou daquela natureza. Foi investigado, foi espionado. Um grande empenho que a gente tem como historiador é chamar atenção para o prejuízo que as pessoas comuns também sofreram.”

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