Calafrios em todo o Brasil
A Canarinha beira o desastre em Belo Horizonte diante de uma seleção do Chile valente, mas se salva nos pênaltis e avança às quartas de final da Copa
Uma onda de espasmos sacudiu todo o Brasil, estremecido diante de outro possível desastre mundial em sua própria casa. A causa da tremedeira foi um bizarro Chile, que deixou tesa a seleção Canarinha, a um dedo do abismo total, abençoada pelas traves em duas jogadas cruciais: um chute do chileno Pinilla no travessão quando faltavam poucos segundos para terminar a prorrogação e, já na disputa de pênaltis, o último chute, o de Jara, arrebentou o mastro esquerdo de Julio César. Só assim, nessa labuta dos pênaltis, na que se confundem vítimas e algozes, o time da casa alcançou as quartas de final com uma tremedeira legendária.
Ao meio-dia, de ponta a ponta do Brasil não havia pulsações, apenas pavor e milhões de fôlegos suspensos. Teria sido um cataclismo que a seleção caísse nas oitavas, a mais de duas semanas da final. A torcida teve motivos para o tremelique e não apenas pela trama do duelo, mas por um jogo tão angustiante como mal jogado pelos comandados de Scolari, uma seleção que perdeu seu encanto para proclamar-se eficaz, como se um conspirasse contra o outro. Contra o Chile foi um conjunto sem força, selvagem em muitos momentos e nada sutil. Os chilenos, por seu lado, deixaram o campo em lágrimas depois de terem chegado muito perto da glória por méritos próprios. O grupo chileno buscou em seu repertório, sem truques ou artifícios. Só o destino o driblou.
Com Scolari, o Brasil descobriu o rugby aplicado ao futebol. Não dissimula sua expressão descarnada. Ele gosta do barulho, bate, ataca, brinca, discute e espera a cartola de Neymar, seu único jogador lúcido e engenhoso de vez em quando. Uma equipe disposta ao jogo machão com um pelotão de soldados rasos, nada que evoque o Brasil trovador, nada a ver com a mística de tantas Canarinhas que seduziam pelo seu romance com a bola, seu garbo para a finta e seu gracejo para tudo. Hoje é uma equipe maciça, uma versão nada refinada de uma seleção a qual é melhor recordar do que ver.
BRASIL (3) 1 X 1(2) MÉXICO
Brasil: Julio César; Daniel Alves, Thiago Silva, David Luiz e Marcelo; Fernandinho (Ramires, 26 min. do segundo tempo), Luiz Gustavo e Oscar (William, 1 min. do segundo tempo da prorrogação); Hulk; Neymar e Fred (Jô, aos 19 min. do segundo tempo).
México: Bravo; Francisco Silva, Medel (Rojas, 3 min. segundo tempo prorrogação) e Jara; Isla, Díaz, Aránguiz, Vidal (Pinila aos 42 min. segundo tempo) e Mena; Vargas (Gutierrez aos 11 min. do segundo tempo) e Alexis Sánchez.
Gols: 1 x 0, min. 18 do primeiro tempo, David Luiz; 1 x 1, min. 32 do primeiro tempo, Sánchez.
Pênaltis: David Luiz, Marcelo e Neymar (BRA); Aránguiz e Díaz (CHI).
Árbitro: Howard Webb (ING). Mostrou cartão amarelo para Mena, Silva e Pinilla (CHI) e Hulk, Luiz Gustavo, Jô e Daniel Alves (BRA)
Estádio Mineirão, em Belo Horizonte, com 57.714 espectadores.
Scolari sempre foi propenso ao jogo cru e definitivamente tirou a máscara. Seu êxito na Copa de 2002 não foi a maior paixão do Brasil com o futebol, mas naquele time havia Cafu, Roberto Carlos e uma tripla coroa: Ronaldinho, Rivaldo e Ronaldo. Doze anos depois, Felipão combate no ataque com Fred, Hulk ou Jô, três jogadores esculpidos em mármore que gravitam sobre Neymar, enquanto este tem dificuldades para sintonizar a mesma onda. Por isso, o mesmo agitador do primeiro ato contra o Chile passa ao esquecimento no segundo e o Brasil se entrega ao forçudo Hulk.
O Chile gosta do corpo a corpo. Falta-lhe altura para o jogo pelas nuvens, mas seus corsários não dobram os joelhos nem a tiros. Tem ordem e coragem. Com Sampaoli, como acontecia com Bielsa, não é rival que seja fácil desgastar. Falta-lhe virtuosismo, mas o time se arranja com os dentes apertados. Mais ainda quando Vidal, que chegou à Copa de maca, ainda não é Vidal. Sem ele, é difícil rodar no ataque, onde Alexis deve se multiplicar. E o fez diante dos brasileiros, para os que foi a principal ameaça e a melhor solução da equipe para proteger a bola e sair para o jogo.
Com o jogo travado nas cordas, a seleção anfitriã não encontrava melhor caminho que as jogadas de bola parada. De escanteio em escanteio, conseguia perturbar os chilenos, muito inferiores em estatura a este Brasil tão atlético e robusto. Em um deles, lançado por Neymar, Thiago Silva prolongou de cabeça e Jara, com David Luiz a um palmo, estampou a bola na rede amiga. O Brasil tinha o jogo de bandeja, como mais lhe agrada: um dique diante de Julio César e muita correria. Enquanto isso, gente como Luiz Gustavo e Fernandinho pareciam estacas.
Neymar é o único jogador lúcido de um time que perdeu o seu encanto para ser eficaz
Paradoxos do futebol. O Brasil mais venenoso também entrega a colher na defesa. Quando o Chile tinha grandes dificuldades para encontrar um caminho no ataque, Marcelo executou um lateral que de forma simples Hulk devia controlar. Vargas antecipou-se a Hulk e deixou o lateral do Real Madrid em terra de ninguém. Alexis agradeceu o passe de seu companheiro e o desatino brasileiro.
A partir do empate, o jogo se fez eterno para o Brasil. A cada minuto mais apertado, mais neurótico. A pressão ia ficando insuportável, enquanto que o Chile, bem postado e com Bravo muito firme, jogava com valentia sem outros contratempos – a não ser alguns ataques de Hulk. Em um deles, todo o país gritou gol, mas o inglês Webb, o mesmo da final de Johanesburgo, não contradisse um dos bandeirinhas, que percebeu uma discutível mão no controle da bola por parte do ponta brasileiro. Com o Brasil em terreno ermo, sem arrancadas de Neymar e com a porcentagem de posse de bola igualada, o Chile teve o prêmio em um arremate de Aranguiz ao que respondeu muito ágil o veterano Julio César.
Julio César foi o protagonista das cenas mais dramáticas do trecho final. Primeiro como espectador do disparo ao travessão de Pinilla, perto do minuto 120; logo, como defensor de dois pênaltis adversários, os do próprio Pinilla e de Alexis. Bravo o imitou diante de Hulk quando Willian já tinha chutado para fora. O desfecho estava nos pés de Neymar. O ídolo diante dos crocodilos. Converteu como não o faria em seguida Jara, o mesmo que tinha marcado para Brasil. Trave a trave, com a ajuda dos deuses, o Brasil inteiro resfolegou. Tomou o ar que o futebol da seleção não lhe deu.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.