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O cinema ‘penetra’ na Maidan

O diretor ucraniano Sergei Loznitsa retrata os protestos em seu país em um documentário através de uma sucessão de planos gravados no coração da revolta

Tommaso Koch
Sergei Loznitsa, durante a rodagem do filme.
Sergei Loznitsa, durante a rodagem do filme.

A Ucrânia também promoveu uma anexação. Foi ontem, em Cannes. Porque, em plena Croisette, o pavilhão do país que hoje é alvo dos olhares de meio mundo era pequeno para acolher a imprensa ali concentrada. Por isso teve que invadir o do Azerbaijão, situado logo ao lado. No entanto, os vizinhos se mostraram encantados – “nossa terra é vossa terra”–, no que talvez seja a única brecha para piadas nessa história. No mais, não há muito material para brincadeiras. Assim mostra o documentário Maidan, no qual o cineasta ucraniano Sergei Loznitsa filmou a praça de Kiev onde os protestos pulsaram com mais vigor. O filme foi projetado em Cannes e foi uma das razões pelas quais ontem o pavilhão ucraniano estava lotado.

Mas há mais motivos. Tantos que dão até para se pensar que a data da projeção de Maidan foi escolhida com astúcia. No domingo a Ucrânia realiza as primeiras eleições presidenciais desde a queda e fuga de Viktor Yanukovich, deposto depois dos protestos na praça Maidan. Há 10 dias, no leste, referendos nas regiões de Donetsk e Lugansk aprovaram a autodeterminação – ilegais, segundo Kiev– e agora as forças ucranianas e pró-russas trocam tiros por suas terras –ontem 14 mortos. E depois, já quase esquecida, está a anexação da Crimeia por parte da Rússia, aproveitando o caos desencadeado no país depois da queda de Yanukovich.

Loznitsa: “O filme mostra o preço que é preciso pagar pela liberdade”

“O filme mostra como as pessoas expulsaram um regime e o preço que é preciso pagar pela liberdade”, argumenta Loznitsa. A conversa transcorre em um clima surrealista no qual os pedidos de entrevista se multiplicam, o tempo para elas se reduz –sobretudo se, como para a Espanha, não há um distribuidor– e pelo pavilhão passeia um sujeito em uniforme de soldado. Por sorte, não é da KGB nem funcionário de Kiev, mas um câmera da televisão polonesa que gosta de andar assim pela vida – sim, é sério.

Loznitsa conta que começou a gravar as revoltas da Maidan em dezembro de 2013. Os ucranianos saíram às ruas para protestar contra a decisão de Yanukovich de não firmar em novembro um acordo de associação com a UE. “Se tudo isso tivesse acontecido em Madri, você não teria ido?”, pergunta o diretor ucraniano sobre as razões pelas quais iniciou esse projeto. O cineasta filmou umas 50 horas durante 10 dias. E depois passou o depoimento para Sergei Stefan Stetsenko, um câmera que prosseguiu com o trabalho de janeiro a março, indo cada dois ou três dias à praça para obter um total de 100 horas de material.

Ambos, que fique claro, respondem da mesma maneira à pergunta sobre se teriam ido à Maidan como cidadãos se não fosse para realizar o documentário: “Certamente!”. Parecida é também sua opinião sobre os ataques a alguns líderes do movimento por suas supostas posições de extrema direita, que eles consideram parte da propaganda russa.

O diretor mal movimentava a câmera, com a qual rodou um total de 100 horas

Seja como for, as duas horas de duração da montagem definitiva são uma série de planos da praça e do que acontecia ali. A câmera apenas se move duas vezes em todo o documentário. O que muda são as áreas onde os dois Sergeis se posicionavam. “Costumava deixá-la em um lugar uns 15 ou 20 minutos e depois a mudava. Às vezes as pessoas me sugeriam ir gravar algo”, relata Stetsenko. “Queria uma descrição. Quando você movimenta a câmera o espectador se pergunta por que você está fazendo isso, e não precisava”, acrescenta Sergei Loznitsa.

Assim, Maidandeslancha com um plano de uma maré de cidadãos cantando o hino nacional e daí segue gravando o dia-a-dia da praça. A primeira parte, com poetas que sobem em um palco para ler suas criações e improvisações com o violão, lembrava a mais de um espanhol o que aconteceu na Plaza del Sol durante os protestos de 15-M. Mas depois de um ultimato do governo em janeiro, a coisa muda.

A câmera dos Sergeis continua ali, mas agora diante dela há chamas, polícia antidistúrbios, gritos e barricadas. Em um momento até se vê as consequências dos tristemente famosos franco-atiradores encarregados de reprimir as revoltas. Por causa deles, Stetsenko mudou sua rotina de trabalho: “Em 19 de janeiro saímos para gravar, eu e um amigo. Só tínhamos um capacete, por isso o compartilhávamos: enquanto ele preparava a câmera eu o colocava e quando começava a gravar, passava para ele. E púnhamos fita negra sobre as telas porque diziam que esse era um dos alvos favoritos dos franco-atiradores.”

O filme termina, assim como os protestos na Maidan, depois de seu êxito e a instalação do novo Governo em Kiev. Mas a história da Ucrânia e seu conflito com a Rússia continua. “Acho que terão de devolver-nos a Crimeia e pedir desculpas”, é o cenário otimista de Loznitsa. E quanto às eleições de domingo, ambos os Sergeis garantem que votarão. Em quem? “Não acho que haja muita diferença entre um candidato e outro. E se finalmente ganhar a opção errada, a Maidan a corrigirá”, sustenta o diretor de Maidan. Ali estará ele, pronto para posicionar a câmara.

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