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“Estou vivo pelo futebol”

Cabañas, artilheiro da Libertadores em 2007 e 2008 e eleito o melhor jogador da América do Sul em 2007, quer completar o milagre de voltar ao futebol profissional O jogador paraguaio, que sofreu uma tentativa de homicídio há quatro anos e ainda tem uma bala alojada na cabeça, foi contratado por um time brasileiro da Série B, o Tanabi Esporte Clube

Cabañas, durante sua apresentação como jogador do Tanabi.
Cabañas, durante sua apresentação como jogador do Tanabi.PIERRE DUARTE (AFP)

Com Salvador Cabañas (Itaguá, Paraguai, 1980) pode-se falar de qualquer coisa, menos da tentativa de homicídio que o deixou de fora da Copa de 2010 e com uma bala alojada para sempre na cabeça: “Não gosto nem de falar nem de lembrar disso”, esclarece ele no começo da entrevista. “Ele fica triste, uma coisa assim sempre deixa sequelas psicológicas”, acrescenta o mexicano José Manuel Ricardo, o “Picolé”, que é há duas semanas o treinador de Cabañas no Tanabi Esporte Clube, da Série B (quarta divisão) do Campeonato Paulista. Cabañas, artilheiro da Libertadores em 2007 e 2008 e eleito o melhor jogador da América do Sul em 2007, quer completar o milagre de voltar ao futebol profissional e, além disso, “retornar à seleção”. Até aquela madrugada de janeiro de 2010, quando José Jorge Balderas Garza (um indivíduo relacionado ao narcotráfico e hoje vivendo como testemunha protegida da polícia mexicana) lhe deu um tiro em um bar da Cidade do México, após uma obscura discussão, Cabañas era uma estrela no clube América, aparecia no radar de várias equipes europeias e era um líder da seleção paraguaia de Gerardo Martino, aquela equipe disciplinada que colocou em seriíssimos apuros a Espanha, futura campeã, no confronto das quartas-de-final da Copa da África do Sul. “Porque eu não estava... Se estivesse, era certeza de que eu chutaria aquele pênalti”, diz ele, em referência à cobrança batida por Oscar Cardozo e defendida por Iker Casillas, aos 11 minutos do segundo tempo, quando o placar estava em 0 x 0.

Mas Cabañas não estava; acabava de sair do hospital. O tiro que levou após uma rápida conversa com seu agressor, no banheiro do bar, se alojou na parte posterior do crânio dele; os médicos descartaram a extração, pois isso acarretava um enorme risco. O jogador demorou uma semana para sair do coma, 23 dias para ter alta da UTI e quatro meses até voltar para casa. A terapia continuou por mais dois anos. Naqueles primeiros dias, na UTI, torcedores e colegas organizavam vigílias e manifestações de apoio no Paraguai e no México, em estádios e igrejas; assim que foi transferido para um quarto normal, recebeu a visita do então presidente do seu país, Fernando Lugo. “Quero voltar a jogar e a marcar gols”, dizia o jogador já em abril, sonhando com a Copa, mas exibindo alguns problemas cognitivos que demoraram muito a serem resolvidos. “A memória é o mais difícil… Tinha muitos problemas, mas agora estou bem, graças a Deus”, afirma hoje, quatro anos depois.

Cabañas tentou voltar ao futebol profissional pela primeira vez em meados de 2012, no Doce de Octubre, uma equipe da segunda divisão paraguaia. Mas a aventura terminou antes de começar. Hoje, continua tendo autorização médica e diz estar “fisicamente bem”, embora tenha engordado alguns quilos em relação aos seus anos triunfais. Seu representante não quer revelar detalhes sobre seu contrato: a única certeza por enquanto é que o atacante jogará três partidas pelo Tanabi enquanto termina de recuperar o condicionamento físico. E depois? “Quero estar bem em uma equipe, brigar por um título e retornar à seleção”, repete sempre Cabañas. O presidente do clube, Irineu Alves, brinca dizendo que “para nós, basta que esteja em 30% do que foi”.

Os dirigentes do clube paulista não escondem o elemento de “loucura” e “marketing” que exala da operação. Alves não confirma nem desmente o rumor de que Cabañas ganhará por esses três jogos mais que o salário mensal de todo o restante do elenco (cerca de 30.000 reais), formado na maioria por atletas do sub-23, por exigência regulamentar. “É uma bonita operação de marketing”, diz um funcionário municipal da cidade paulista, com poucas expectativas de ver Cabañas, aos 33 anos, apresentar um bom rendimento num torneio juvenil. O Tanabi, aliás, já teve outro “momento de glória” semelhante há dois anos, quando contratou por três meses o conhecido centroavante errante Túlio Maravilha, que então, aos 42 anos, vivia sua peculiar peregrinação em busca do milésimo gol da sua carreira (segundo suas próprias cifras). Tanto na época quanto agora, ao que parece, as contratações estimularam a vinda de jovens jogadores que aceitaram um preço menor ao do mercado em troca de poder compartilhar vestiário e gramado com um astro internacional. A cidade, com apenas 25.000 habitantes, se alvoroçou nesta semana com a apresentação do jogador paraguaio, visivelmente emocionado com o calor popular.

Alves, o presidente do Tanabi, conta que teve a ideia de viajar a Assunção (1.160 quilômetros de carro) para convencer Cabañas depois de ver uma reportagem de televisão que o mostrava trabalhando numa padaria da sua família para arcar com as dívidas deixadas pelo fim do casamento com a mãe de seus dois filhos. Vários artigos circularam na imprensa falando da sua suposta bancarrota, a qual ele agora nega terminantemente. “Perdi muito, mas estou recuperando. Não trabalho na padaria, estou lá com o grupo. É do meu cunhado.” E acrescenta: “Tenho para viver... Recuperei bastante dinheiro por intermédio do juiz.”

O novo Cabañas continua obcecado com o futebol (“Estou vivo pelo futebol, sabe…? Se não, estaria morto”), mas durante seu longo processo de recuperação admite ter estado um pouco afastado do futebol internacional. Faz mais de um ano, inclusive, que não tem contato com a federação de seu país nem com os dirigentes da seleção que lhe deu, como diz, “as lembranças mais bonitas de minha vida, desde o sub-17”. Com a camisa vermelha e branca ele marcou gols que entraram para o imaginário dos seus compatriotas, como naquele chute de 40 metros contra a Colômbia, nas eliminatórias da Copa de 2010, que praticamente selou a classificação paraguaia. Depois de um dos momentos de ligeira amnésia que ainda o atacam eventualmente, e após mencionar o Brasil e a Argentina como favoritos para a Copa deste ano, ele comenta sobre o mau momento da seleção paraguaia, da qual “Gerardo Martino saiu porque já não havia um líder no campo”, e afirma peremptoriamente que “Messi é melhor que Cristiano Ronaldo”. Outros jogadores atuais que o fascinam? Breve pausa. “Na verdade, eu não saberia lhe dizer…”

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