Para não esquecer!
P. não sabia como lidar com a arma que lhe entregaram. Pela manhã, o oficial comunicou que poderia haver confusão, portanto que se mantivessem em alerta máximo. P. participara do Golpe de 1964.
A professora tomava nas mãos o retrato do ditador, general Emílio Garrastazu Médici, levantava-o por sobre a cabeça, como um estandarte, e exibia-o aos meninos e meninas, que, em filas separadas, cantavam desafinados o Hino Nacional. O sol castigava a tarde e, de vez em quando, um de nós desabava, desmaiado de fome. As nuvens deslizavam lentas, como lento arrastava-se o tempo, adiando o término da Hora Cívica. Enfim, a diretora dava uma ordem e os uniformes ocupavam excitados as carteiras do Grupo Escolar Flávia Dutra, à beira do Rio Pomba, em Cataguases, no fundo falso de um Brasil gigante. Crianças, ignorávamos que mais lentas ainda escorriam as horas para aqueles que, clandestinos, sacrificavam seus melhores anos numa luta desigual contra o aparato militar, nos porões das cidades ou no meio das florestas, cultivando esperanças que nunca frutificariam. Lentos, mais lentos ainda, os passos dos exilados espalhados pelo mundo. Lentos, muito mais lentos ainda, os minutos apodrecendo nas prisões do país, onde carrascos torturavam prisioneiros, donos de seus corpos e de suas almas.
Havia em minha cidade um delegado, cujo nome tornou-se durante anos sinônimo de truculência, que orgulhava-se de bater nos presos, pessoalmente, sem necessitar do auxílio dos policiais que o acompanhavam na ronda pelas ruas atrás de “maconheiros, cabeludos, invertidos, marginais, bêbados e vagabundos”. Havia um professor de ginástica que investigava os estudantes para descobrir potenciais “subversivos” – desta função aproveitavam seus filhos e os amigos dos seus filhos para intimidar os colegas. Havia um prefeito ignorante, célebre por suas gafes, que fazia da perseguição aos adversários sua plataforma política.E havia principalmente o silêncio.
A professora de geografia suspensa por permitir que os alunos discutissem sobre o regime soviético – ela tentava demonstrar a superioridade dos fundamentos capitalistas. O associado do Sindicato dos Mestres e Contramestres da Indústria de Fiação e Tecelagem que perdeu o emprego – e teve que fugir às pressas para o Rio de Janeiro – por se dirigir “de maneira ofensiva” ao presidente da entidade. O poeta alternativo negro da Granjaria, estilo black power, que, obrigado a entrar num carro sem placas, nunca mais foi visto.
Sentado num bar, sábado à tarde, à mesa um pratinho de traíras sem espinho com rodelas de limão e garrafas de cerveja, P. confessa emocionado seu maior desgosto. Ele contava 18 anos e cumpria o serviço militar obrigatório, conscrito no Corpo de Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro. Não entendia por que dois meses antes teve que tosar os lambidos cabelos negros, “de índio”, e muito menos por que, desconfortável dentro do uniforme, havia sido deslocado para o alto daquele morro, em posição de tiro. P. não sabia como lidar com a arma que lhe entregaram e não fazia ideia do objetivo daquele exercício. Mirava a noite, tenso, a lânguida Baía da Guanabara estendida lá embaixo. Pela manhã, o oficial comunicou que poderia haver confusão, portanto que se mantivessem em alerta máximo. P. participara do Golpe de 1964...
Há 50 anos, sob o argumento de “evitar o caos político-econômico-social e a guerra civil, que ameaçava o país”, os militares, liderados pelo general Olimpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora (MG), depuseram o presidente João Goulart, na madrugada de 31 de março para 1º de abril, inaugurando um dos períodos mais tenebrosos da história brasileira. Foram 21 anos até a eleição indireta de Tancredo Neves, em 15 de janeiro de 1985, conquistada após um amplo movimento da sociedade civil pelo fim da intervenção das Forças Armadas. O legado deste período de desmandos, repressão e censura foi a desorganização dos sistemas de educação e saúde, a expansão dos círculos de corrupção, o aprofundamento do fosso entre as camadas mais ricas e mais pobres da sociedade, a propagação da violência urbana, e, principalmente, a perda de confiança nas instituições...
Estranhamente, passados apenas 29 anos do fim do regime de exceção, pouco se fala deste ignominioso período de ditadura militar... É como se, pela omissão, tentássemos fingir que nunca tivesse havido esta longa noite...
Então, para não esquecermos nunca, para estarmos sempre alerta contra os atentados à nossa débil democracia, deixo aqui esse breve registro.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.