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carnaval
Coluna
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Três tentativas frustradas

Não gosto de carnaval. Mas, confesso, por três vezes tentei romper esse estigma, sem sucesso

Não gosto de carnaval. Para mim, que cultivo a timidez como a uma flor, estar no meio de um turbilhão, rodeado por pessoas desconhecidas, e, ainda por cima, mascaradas ou fantasiadas, é um pesadelo. Nunca consegui dar um passo de samba e meu corpo, rijo, embora compreenda e aprecie a linguagem, não alcança acompanhar o ritmo da música. Herança, talvez, de certa visão de mundo católica rural, que supervalorizava o trabalho em detrimento do lazer – como se aos olhos de Deus o divertimento estivesse vetado aos homens.

Mas, confesso, por três vezes tentei romper esse estigma, sem sucesso. Em geral, durante toda a minha infância, minha mãe me encaminhava nas férias, tanto as pequenas, do meio do ano, quanto as grandes, do verão, para Rodeiro, onde consumia os dias na solidão e no silêncio da Fazenda do Paiol, nome pomposo para o sítio dividido entre meus tios Pedro, José e Antônio. Distante meia légua do núcleo urbano, vivíamos lá numa espécie de redoma, um lugar fora do tempo e do espaço – as notícias chegavam-nos literalmente a cavalo.

Numa das raras vezes em que estava em Cataguases no período do carnaval, me senti na obrigação de participar, de alguma maneira, dos festejos, para não ser motivo de chacota dos colegas. Eu tinha algo em torno de 10 anos e habitávamos um cortiço na Vila Teresa, cujos moradores desfilavam orgulhosos na agremiação do bairro, o Grêmio Recreativo e Escola de Samba Luzu. Na tarde de sábado, munidos de surdo, caixa de guerra, tamborim e muitos apitos, um pequeno cordão ganhou a rua, para alegria dos passantes. Os meninos meus vizinhos conclamaram a juntar-me a eles e, como necessitava de uma fantasia, me convenceram a pegar a fronha do travesseiro, fazer buracos para os olhos e a boca e amarrar na cabeça, como um capuz.

Contente, segui o bloco. A brincadeira consistia apenas em irmos nos empurrando uns aos outros e jogando água nos transeuntes. Em determinado momento, alguém surgiu nos pulverizando com talco, que, misturando-se ao suor, criou uma crosta pegajosa sobre a pele. Esquecido de tudo, perambulei pelas imediações, até que uma chuva morna, grossa e breve dispersou-nos com impaciência. Ao chegar em casa, minha mãe me aguardava nervosa, não só porque não havia avisado da minha ausência, mas também porque inutilizara a fronha do meu travesseiro. De castigo, assisti as traquinagens de março debruçado à janela.

Adolescente, dei-me uma segunda chance. Eu acabara de completar 17 anos e há pouco mudara para Juiz de Fora, onde labutava como torneiro- mecânico. Meus amigos me persuadiram a ir ao baile do Aexas, a associação dos ex-alunos do Senai, famoso pela animação e pela beleza das moças que o frequentavam. Antes, porém, passamos num botequim para nos preparar. Tomamos não sei quantas garrafas de cervejas e bebemos não sei quantas doses de cachaça. Parecia que intuíamos que aquela seria a última vez que nos reuníamos – a vida imporia cunhas que nos distanciaram para sempre. Não lembro se algum deles conseguiu ir ao clube. Eu cheguei em casa carregado, no primeiro porre da minha história.

A terceira e última tentativa data de uns 15 anos depois. Jornalista, optava por trabalhar nos feriados de Natal e carnaval, folgando no Ano Novo e Semana Santa. Numa das raras vezes em que modifiquei esse esquema de plantão, aceitei convite de minha namorada e nos dirigimos, com mais três casais de amigos dela, a Cabo Frio, onde alugamos uma ampla casa na praia do Peró. Planejava descansar, mas na última hora, por insistência de V., uma das mulheres do grupo, casada com P.B., fomos instados a comprar fantasias baratas na Rua dos Biquínis – odaliscas, marinheiros, presidiários – para participar da concentração de foliões na Praia do Forte. Conseguimos um lugar numa lanchonete, bem em frente ao mar, e ficamos a bebericar, observando o movimento.

Então, V., visivelmente contrariada com o marido, discutiam todo o tempo desde que aportarmos na cidade, anunciou que iria aderir ao cortejo e levantou-se. P.B., agarrando seu braço com violência, puxou-a de volta. Antes que pudéssemos intervir, ela, no afã de se desvencilhar, caiu sobre a mesa vizinha, com estardalhaço. O marido alçou-a e acertou um murro em seu rosto. Tentei apartar a briga, mas levei um soco no nariz, que, até hoje, nas noites de frio, lateja. A partir deste momento, a confusão se generalizou.

Vestido com farrapos de pirata, voltei para casa com minha namorada, que carregava hematomas nas costas e nas pernas. No trajeto, envergonhado, anotava os termos de meu divórcio com o carnaval.

Luiz Ruffato é escritor

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