Um sobrevivente de Sabra e Chatila: “Deus vai castigar Sharon”
Os sobreviventes de Sabra e Chatila lamentam que o general israelense tenha morrido sem ir a julgamento
Mohamed Srur ainda vive na mesma casa onde seu pai e cinco de seus irmãos foram crivados de balas, logo na entrada do campo de refugiados palestinos de Chatila, na periferia de Beirute (Líbano). “Era 16 de setembro, às 6h da manhã. Vi os milicianos chegando do estádio, eram tantos! Começaram a atirar nas pessoas. Falei para meu pai, mas ele não acreditou em mim, ficou em casa, não pensou que iam matar as pessoas, mas prendê-las”, recorda Srur, que tinha 19 anos na época. “Ainda hoje, 32 anos depois, sinto como se estivesse acontecendo agora.”
Os três dias de massacre perpetrado em 1982 por milicianos falangistas cristãos contra os palestinos dos campos de Sabra e Chatila, como vingança pelo assassinato do então presidente libanês, Bashir Gemayel, constituem um dos episódios mais negros da guerra civil libanesa (1975-1990). Qualificada como “ato de genocídio” pela Assembleia Geral da ONU, a morte de entre 425 e 1.500 pessoas (segundo dados israelenses e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, respectivamente, se bem que o número total possa ter chegado a 3.000, segundo outras investigações) perdura como a principal mancha na ficha do falecido ex-primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, que uma comissão israelense apontou como “responsável indireto” pelo massacre.
Em 1983, Sharon, ministro da Defesa israelense durante a invasão do Líbano, foi acusado por uma investigação israelense de “ignorar o perigo de derramamento de sangue e de vingança quando aprovou a entrada dos falangistas nos campos”. O caso levou a sua demissão como ministro, mas não deteve sua carreira política. Suas tropas estavam encarregadas da vigilância dos campos de refugiados palestinos de Beirute, onde se abrigavam cerca de 2.000 combatentes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Duas semanas depois de os milicianos palestinos abandonarem os campos, uma coluna cristã irrompeu à noite nas ruas hoje repletas de pessoas que perambulam entre barracas de feira, barbearias e cafés. Isso se deu sob o olhar dos militares israelenses, que permitiram o acesso dos milicianos cristãos sob o pretexto de que iam deter “terroristas”.
“Nunca vamos esquecer essa matança”, observa Abu Maher, 61 anos. “Passamos seis ou sete dias cercados [pelos israelenses], não podíamos sair.” Para os moradores de Sabra e Chatila, Ariel Sharon foi pouco menos que um “assassino”, como se ele tivesse ordenado pessoalmente o ataque contra seu próprio inimigo. “Sharon quis acabar com a OLP”, declara Qassem Hassam, representante do partido palestino Fatah em Chatila e militante da OLP em 1982. “Superamos aquela provação, não desaparecemos.”
“Se a Justiça não castigou Sharon, Deus haverá de fazê-lo”, clama Fausi al Hasan. Em 1982 ele era um menino assustado de 8 anos de idade, escondido no porão de seu edifício, na entrada de Chatila, com sua mãe, sua irmã e outros 150 vizinhos. “No segundo dia, minha mãe mandou minha irmãzinha buscar leite. Tínhamos ouvido das pessoas que eles não queriam matar mulheres e crianças. Quando minha irmã saiu, viu uma mulher morta na rua, então fugimos para o hospital Kazia, em Sabra. Três deles vieram atrás de nós, disparando. Quando chegamos, encontrei meu pai e meu irmão chorando, porque pensavam que nos tinham matado.”
A memória de Fausi navega entre imagens de máquinas escavando uma vala comum para nela jogar centenas de cadáveres, e corpos mutilados, como o de uma mulher grávida, com o ventre aberto. Mesmo assim, ele ri quando conta do pavor de seu gato. “Quando o encontrei em casa, pensei que ele ia vir para mim, porque o chamei, mas ele pulou em cima de mim, agressivo”, ironiza. “Os cães e gatos tinham começado a devorar os corpos.”
“É triste que Sharon tenha morrido assim”, comentou Mohamed Srur com uma calma que o leva a estremecer com o ódio que esconde. “Deveria ter morrido nas mãos de crianças e mulheres palestinas.” De uma família de nove pessoas, sobreviveram apenas ele, sua mãe, suas duas irmãs e um irmão menor, que passou a noite agachado entre os cadáveres de seu pai e seus irmãos, assassinados no muro de sua casa.
Em 2001 a família tentou levar o caso ao Tribunal Penal Internacional. Nohad, uma das irmãs, somou-se à denúncia contra Sharon apresentada diante de um tribunal belga por 40 vítimas do massacre. O tribunal acabou por rejeitar a jurisdição universal para condenar o ex-primeiro-ministro, alegando que nenhum dos querelantes tinha nacionalidade belga. “Isso me deixou triste”, Srur prosseguiu. “Eu tinha esperanças, mas não aconteceu nada. No fundo, eu sabia que nunca o castigariam.”
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