Um pai repressor na ditadura e outro, vítima de um tirano. A dor e o amor dos filhos que ficam
Renato Cisneros e Hisham Matar exorcizam na literatura o peso dos seus genitores. O primeiro é filho de um militar peruano; o outro, descende de um combatente de Muamar Kadafi
Renato Cisneros descobriu um dia que seu pai, militar peruano, tinha colaborado com as práticas criminosas da ditadura argentina. Hisham Matar, também filho de militar, sempre soube quem era o dele: perdeu a vida por enfrentar o regime do líbio Muamar Kadafi. Mas ambos são unidos pela dor. A de Cisneros, pelas atrocidades do pai; a de Matar, porque mal chegou a conhecê-lo.
Às vezes acontece de pessoas com quem concordamos em um momento, e que não voltaremos a ver, nos surpreendem com um pensamento que fica gravado em nós. Desde que publiquei em 2010 um livro sobre a relação que tive com meu pai, muita gente se aproximou de mim para contar sua história. Sabe como é? Cada pai é um mundo e no fim a marca que quase todos deixam é parecida —me disse uma vez um velho de olhos azuis na feira do livro. E o que eu digo é que mal conheci o meu. Duas vezes o visitei na cadeia de Carabanchel e foi o suficiente.
O pai de Cisneros defendia a disciplina militar dentro e fora de casa. Renato era castigado até quando não tirava a nota máxima em uma prova
Há dois anos, o grande ensaísta italiano Massimo Recalcati publicou The Telemachus Complex (O complexo de Telêmaco), onde contrapunha o mais do que conhecido e freudiano complexo de Édipo (o do filho que tenta destruir a autoridade do pai) com o que ele chama de complexo de Telêmaco, ou seja, o do filho que persegue o contrário: restaurar a autoridade paterna. Telêmaco —recordemos— é o filho de Ulisses que na Odisseia de Homero se consome à espera do pai desaparecido depois da guerra de Troia, enquanto Édipo —igualmente na Odisseia, mas sobretudo nas três tragédias homônimas de Sófocles— é o filho do rei de Tebas que, sem conhecer sua relação filial com eles, mata o pai e se deita com a mãe. Recalcati, em seu livro, usa a figura de Telêmaco para analisar a perda de autoridade paterna na sociedade contemporânea: pais cúmplices, pais ausentes, pais atropelados pela força dos tempos, pais sem ascendência, afastados do papel tradicional. Para além desse propósito, que ele encara —é preciso destacar— sem nostalgia, sua distinção entre Telêmaco e Édipo condensa os dois extremos entre os quais orbita, diríamos, a relação pai/filho.
Os filhos chegam tarde à vida dos pais e demoram ainda mais tempo para tomar consciência disso. Os pais, por mais próximos que sejam, sempre representam um mistério. Nunca os conhecemos de todo porque os transformamos em matéria de reflexão quando já percorreram grande parte do caminho vital que os singulariza. Contam-nos histórias sobre suas vidas, mas as histórias são isso, histórias, um relato justificativo traçado na medida de suas carências e sonhos não realizados, de suas plenitudes e metas alcançadas, e o que o filho precisa é criar seu próprio relato, um relato independente que o ajude em seu caminho necessário à emancipação. Não nos enganemos: é preciso que o filho que teve um pai severo, pouco dado à negociação, se emancipe, assim como o filho que teve um pai permissivo e superprotetor. Telêmaco precisa se emancipar e Édipo também.
O escritor peruano Renato Cisneros (Lima, 1976) sabe muito bem sobre pais severos. Ele acaba de publicar pela Editora Planeta La distancia que nos separa, um livro autobiográfico, tão perturbador quanto bem escrito, que já foi lançado com grande sucesso em seu país. O pai de Cisneros, Luis Federico Cisneros, apelidado de El Gaucho Cisneros, foi um militar peruano educado na mesma academia —o Colégio Militar de la Nación— em que estudaram os monstros da Junta argentina que, com Videla à frente, fizeram do assassinato e da tortura em massa um instrumento de dominação política do país nos anos setenta.
Cisneros pai, o gaúcho, não só foi amigo de todos eles, não só lhes deu amparo e justificou seus crimes, como, durante a ditadura de Morales Bermúdez, ocupou a pasta de Ministro do Interior do Peru, colaborando com seus velhos companheiros de academia ao lhes entregar exilados argentinos que, como o montonero Carlos Alberto Maguid, desapareceram nos célebres voos da morte ou foram torturados. Como ministro do Interior, também ordenou o sequestro de opositores e foi responsável por uma política repressiva com seus compatriotas que, se não chegou aos extremos de vilania da Junta argentina, se deveu a razões alheias a sua vontade, que provavelmente têm mais a ver com a idiossincrasia do Peru naquele momento. De fato, quando no início dos anos oitenta voltou a ser ministro, então no Governo democrático de Belaúnde e desta vez da Guerra, defendeu diante do terror primitivo do Sendero Luminoso medidas muito similares às de seus pares argentinos.
O que faz um filho sensível com uma herança dessas? Renato Cisneros só soube da verdadeira personalidade do seu pai depois que este já havia morrido. Talvez nem ele mesmo saiba o que faria se tivesse sabido antes. Por isso, o único recurso para exorcizar o drama era contá-lo. Seu pai, defensor da disciplina militar dentro e fora de casa, aplicava-lhe castigos até mesmo por não tirar nota máxima numa prova. E no entanto, durante sua infância, não se incomodava tanto com essa rigidez, e sim com o inacessível laconismo que o cercava e com o fato de ser um pai idoso. Envergonhava-se do seu aspecto antiquado de avô, mas ao mesmo tempo se envaidecia com o respeito que infundia nos outros e se comovia, agradecido, com as demonstrações de áspero carinho que também lhe oferecia. Essas oscilações do afeto são próprias de qualquer filho que está crescendo, por mais que tenha pais perfeitos, se é que isso é possível. E, pelo mesmo motivo, o fato de o seu pai ser um general odiado por muita gente não as torna mais agudas. Numa infinidade de casos, o tortuoso caminho até a independência filial começa com a descoberta de uma mentira ou uma ocultação. No caso dele foi a revelação de que os dois casamentos que seus pais diziam ter celebrado eram falsos. Logo viria a descoberta de uma história familiar marcada por uniões ilegítimas de três gerações de seus ancestrais, e mais tarde as fotos com Videla, e com elas o complicado histórico político de seu pai.
Hisham Matar realizou durante 20 anos campanhas internacionais pela libertação de seu pai. Quando pôde voltar à Líbia, não encontrou nem sequer o seu cadáver
Hoje em dia, Cisneros vive em Madri, dedicando-se à escrita, depois de ter abandonado uma exitosa carreira como jornalista de televisão e de rádio em seu país. É apenas especulação, mas o fato é que, para alguém que leu o seu livro, é impossível não pensar que, em sua forma discreta, em seu tom comedido, junto com o alívio de ter se aberto, se esconde uma dupla melancolia: vergonha por causa de uma herança que renega e, ao mesmo tempo, um estigma mais difícil de conter. Durante um jantar que compartilhamos com outros escritores, na hora de descrever seu livro, ele aparentemente não hesitou em qualificar seu pai como repressor e torturador. Qual é o preço psicológico que se paga ao dizer isso sobre o próprio pai, mesmo sendo verdade? Pode-se imaginar que, nesse diálogo permanente que mantemos com os nossos pais falecidos, Renato Cisneros, com razão, não facilitou as coisas para si mesmo.
Em uma posição oposta, embora com uma dose de melancolia comparável, está o escritor britânico de origem líbia Hisham Matar (Nova York, 1970), cujo livro O regresso foi publicado em julho. São as memórias em carne viva, belas e comoventes até não poder mais, das peripécias de sua vida a partir do desaparecimento de seu pai, um militar de oposição ao regime de Kadafi sequestrado em 1990 no Egito, onde estava exilado, e detido na terrível prisão de Abu Salim, de onde nunca saiu. Se Renato Cisneros é o filho que, como Édipo, se opõe ao pai e se forja nessa oposição, Hisham Matar é o filho que, como Telêmaco, deve aprender a amadurecer e se tornar um homem diante do espelho da sua ausência. Pior ainda do que isso. “Bem que eu gostaria de ser filho de um homem feliz, a desfrutar a velhice no meio de suas terras, mas meu pai é o mais infeliz dos homens”, exclama o Telêmaco de Homero no Canto I da Odisséia quando a deusa Atena, disfarçada, lhe conta que seu pai está vivo e o insta a sair à sua procura. Ao menos a espera de Telêmaco teve um fim; a de Hisham Matar, em contrapartida, nunca o terá. Fisicamente falando, ela se prolongou por 20 anos: até a queda de Kadafi, quando, após ter realizado campanhas internacionais pela libertação do pai, voltou à Líbia durante a revolução de 2011 para procurá-lo e, depois de ouvir alguns de seus companheiros de cativeiro e apesar da ausência de um cadáver para chorar, teve de aceitar a sua condição de órfão. Mas espiritualmente, a coisa é diferente. Em seu livro, ele o expressa da seguinte maneira: “Diferentemente de Telêmaco, passados 25 anos eu continuo a sofrer a morte ignorada e o silêncio de meu pai. Invejo o caráter definitivo dos enterros. Anseio pela certeza. Como será essa coisa de poder segurar os ossos nas suas próprias mãos, escolher como colocá-los, poder jogar um pouco de terra e fazer uma oração?”.
O pai de Matar foi um herói à moda clássica, uma pessoa que arriscou tudo o que tinha para combater uma tirania, e logicamente é mais fácil conviver com a lembrança de um herói do que com a de um vilão; não há como duvidar disso. Ocorre, porém, que os filhos não precisam de heróis, mas sim de pais. Uma coisa é a recordação tornada memória irrevogável; outra coisa é uma criança que observa, em sua vida, como as ações de seu pai a distanciam dele e ameaçam afastá-lo para sempre. Matar sentiu esse temor premonitório quando seu pai, antes de ser sequestrado, organizava incursões armadas a partir do Chade com o objetivo de derrubar Kadafi. Não se limitou a tê-lo como filho. Foi, também, o detonador de suas primeiras rebeliões. “Ele sempre tinha parecido ser, para mim, a quintessência daquilo que significa ser independente. Somado ao seu destino incerto, isso dificultou a minha própria independência. Precisamos de um pai contra quem nos rebelarmos. Quando o pai não está presente, nem vivo nem morto, quando ele é um fantasma, a vontade é impotente. Sou filho de um homem incomum, talvez até mesmo de um grande homem. E quando, como a maioria das crianças, me rebelei contra essas primeiras percepções que eu tinha dele, eu o fiz porque temia as consequências de suas convicções, precisava desesperadamente desviá-lo do seu caminho”.
O pai de Matar foi um herói à moda clássica, uma pessoa que arriscou tudo o que tinha para combater uma tirania
Toda relação pai-filho é repleta de sentimentos opostos, mesmo em ambientes seguros, dentro de famílias pacíficas e convencionais. Isso é demonstrado pela extensa literatura existente sobre o pai, que, como todos os gêneros ligados à autoficção, vive nos últimos anos um pico extraordinário. O que é um pai, ao fim e ao cabo, para um filho? Entre outras coisas, é a primeira pessoa a ser imitada e de quem logo queremos nos afastar, e o problema está em que, tanto ao atender ao primeiro impulso como ao segundo, cometemos injustiças. Como em todos os campos de jogo em que amor e dor estão presentes, é um assunto cheio de matizes e subjetividades opostas, de pais que não podem ser perfeitos, mesmo querendo sê-lo, e de filhos que anseiam por um modelo a seguir com a mesma ferocidade com que se lançam para a vida. No fundo, o conflito com os pais é o mesmo que sentimos com a realidade quando os contos infantis desmoronam e descobrimos, espantados, que na vida real nem sempre são os bons que vencem. Depois, com o passar dos anos, tudo se acomoda e tendemos a buscar explicações inclusive para aquilo que não as tem, mas há um momento durante o qual podemos ser Telêmaco e Édipo ao mesmo tempo.
Nas páginas finais de seu livro, Renato Cisneros faz um raciocínio em relação ao qual não é fácil adotar uma posição: “Da mesma maneira como há desconforto e dor no relato dos filhos dos perseguidos, dos deportados, dos desaparecidos, cujas histórias sintetizam a frustração e a ausência de defesa de milhões de pessoas e detonam uma rebeldia coletiva contra a impunidade, também existe desconforto e dor no relato do filho de um militar repressor que fez afirmações terríveis e não hesitou em ordenar a prisão ou o sequestro de pessoas que depois contariam as suas histórias com a dose de heroísmo que lhes cabe”. Quando pergunto a Hisham Matar, por e-mail, o que ele acha disso, ele escapa da questão fazendo-me lembrar que não estamos no território da vida, mas sim no da literatura. “O peso que todo filho carrega é sempre complexo e digno de reflexão. O que mais me interessa, no entanto, é o que poderíamos chamar de terceiro efeito da arte, o qual é independente do tema da obra e de seu criador. Por exemplo, não se pode dizer que meu livro seja uma representação da relação entre meu pai e eu, embora, de uma maneira difusa e inescrutável, ele capte elementos dessa relação, como o seu silêncio e sua velocidade. Mas ele trata, no fim das contas, de algo a mais, muito diferente de tudo isso”.
Talvez do simples fato de ser filho.
O autor ganhou em 1999 o prêmio Herralde de Romance com sua obra Paris. Seus livros foram publicados em outros idiomas, como inglês, alemão, francês, italiano e português. É colaborador do EL PAÍS desde 1995, tendo sido crítico literário do suplemento Babelia até 2010.
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