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Em pleno caos financeiro, a polícia bate à porta dos governantes do Rio de Janeiro

Prisões dos ex-governadores revelam a decadência do Estado que há pouco tempo era o centro das atenções

María Martín
O ex-governador do Rio, Sergio Cabral, em 2007.
O ex-governador do Rio, Sergio Cabral, em 2007.Sebastiao Moreira (EFE)
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“Esse Sérgio Cabral é o maior mico que o Rio de Janeiro já teve”. Faz três anos que o ex-governador do Rio Anthony Garotinho ridicularizava em uma entrevista à revista Piauí os desmandos, farras e relações promíscuas do também ex-governador com empresários. Foi Garotinho (PR) quem vazou as fotos de Cabral (PMDB) em uma luxuosa festa de 2009 em Paris onde construtores e secretários do seu Governo fundiam-se em abraços regados de champanhe e guardanapos na cabeça. Em uma nova interpretação do sujo falando do mal lavado, os dois foram presos preventivamente em menos de 24 horas e, com suas prisões, revelou-se a decadência de um Rio de Janeiro que passou de ser centro das atenções internacionais pelos eventos esportivos e a exploração do pré-sal, a um Estado à beira do colapso financeiro carcomido pela corrupção.

Assim como o Estado que governou por quase dois mandatos (de 2007 a 2014), a gestão de Cabral também viveu seu auge e sua queda. O peemedebista era considerado pelos seus aliados como o melhor governador que o Rio já teve, costurou alianças com Lula e Dilma Rousseff que trouxeram uma chuva de milhões para o Rio e foi o impulsor da criação das Unidades da Polícia Pacificadora (UPP) conseguindo, pela primeira vez, reduzir as taxas de homicídios abaixo de 30 mortes por cada 100.000 habitantes. O programa hoje não é mais sinônimo de boa gestão, mas na época encantou as elites cariocas aterrorizadas com a violência. O próprio Cabral, que destinava boa parte da sua agenda a viagens internacionais e nacionais não divulgados, gabava-se em público da combinação de “legalidade, moralidade e transparência” como a chave de sucesso na administração publica.

Do anel de 800.000 reais às viagens de helicóptero

Mas o jeito de Cabral de fazer política, hoje detalhado em um mandado de prisão de 124 páginas, era questionado há anos por detratores e jornalistas. A lista de suspeitas é extensa, dos contratos milionários do escritório da mulher Adriana Ancelmo, a maioria vindos de concessionárias e prestadoras de serviço ao Governo do Rio, passando pelos viagens de lazer no helicóptero oficial do ex-governador, a compra caríssimos presentes, como o anel de 800.000 reais entregue à primeira-dama, mas pago com o cartão do empresário preso Fernando Cavendish. Cavendish, presente naquela famosa festa dos guardanapos de Paris, era dono da construtora Delta, beneficiada por Cabral, segundo as investigações, nas licitações públicas do Estado.

Já em 2010, a Folha de S. Paulo revelou que havia indícios de cartel das principais construtoras hoje envolvidas na Lava-Jato (Odebrecht, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão) para conquistar a licitação do Programa de Aceleração do Crescimento em três grandes favelas do Rio. O projeto é hoje alvo de investigação da Polícia Federal depois de que os delatores da Andrade Gutierrez revelassem que 5% do valor das obras foram destinadas a propina – em espécie, presentes e em doações a campanhas ­– para o ex-governador. Segundo as investigações, Cabral também recebeu propina, chamadas por ele de “oxigênio”, da superfaturada reforma do Maracanã para sediar a Copa do Mundo de 2014, das obras da rodovia Arco Metropolitano e dos trabalhos de terraplenagem do complexo petroquímico Comperj, cuja construção está parada desde o ano passado.

Entre as empresas beneficiadas fiscalmente por Cabral, havia boates e cabelereiros, entre eles o responsável pelos cuidado do cabelo da então primeira-dama

As isenções fiscais – hoje no centro do debate sobre a desastrosa situação financeira no Estado – que Cabral outorgou a um nutrido grupo de empresas amigas também foram questionados pela Folha em 2011. A reportagem revelava que entre 2007 e 2010 o montante de renúncias fiscais cresceu 72% chegando a 50 bilhões de reais, mais da metade do valor da receita tributária desse período. Entre as empresas beneficiadas, havia boates, cabelereiros (entre eles o responsável pelos cuidado do cabelo da então primeira-dama, obrigada pela Justiça a depor), motéis, mercearias, padarias e postos de gasolina.

Até hoje, e apesar do seu nome pipocar em diferentes episódios de supostos desvios de dinheiro público, Cabral sempre negou as acusações e manifestou indignação e repúdio ao envolvimento do nome dele com qualquer ilícito. Todas as acusações terão de ser provadas se o ex-governador vier a responder formalmente pelos crimes.

“As prisões de dois ex-governadores, embora seja por crimes distintos, dá indícios de que a crise que o Estado atravessa e que afeta a população como um todo tem relação com os desmandos políticos dos seus governantes. As prisões estão em um contexto de muita apreensão, pois estão sendo discutidas medidas que implicam sacrifícios, enquanto vê-se muito dinheiro envolvido em supostos esquemas de corrupção”, avalia o cientista político Ricardo Ismael, professor da PUC-Rio.

Além dos 5% de propina que Cabral cobrava das construtoras, as delações premiadas dos empresários da Andrade Gutierrez e da Carioca Engenharia apontam que, desde 2008, o ex-governador recebia mesadas das construtoras de 350.000 reais e 500.000 reais respectivamente. Como em outros casos da Lava Jato, não faltam vozes que questionam o uso de prisão e da condução coercitiva pela Justiça que, na visão de parte dos especialistas, só deveria ser usada em casos excepcionais.

O governador mais impopular do país

O fim político de Cabral chegou com as manifestações de junho de 2013. Tornou-se alvo dos protestos e um grupo de manifestantes acampou na frente do seu prédio no rico bairro do Leblon. Passava de ser um governador com projeção nacional como possível vice de Dilma Rousseff a ser o governador mais impopular do país, com apenas 12% de aprovação. Ele acabou deixando o governo oito meses antes do fim do mandato para facilitar a eleição do seu vice e sucessor, Luiz Fernando Pezão, mas continuava, até hoje, sendo peça chave nas decisões tomadas pelo PMDB do Rio, além de manter pessoas do seu grupo em posições de influência no Governo Michel Temer, como o ministro dos Esportes, Leonardo Picciani.

Para César Maia, “a ausência de oposição efetiva por vários anos criou a sensação de que tudo era possível. Leis tramitavam como decreto e os poderes executivo e legislativo atuavam como um só poder”
Foto divulgada no Blog do Garotinho, em 2012, mostra o empresário Cavendish e ex-secretários de Cabral em Paris.
Foto divulgada no Blog do Garotinho, em 2012, mostra o empresário Cavendish e ex-secretários de Cabral em Paris.

O ex-prefeito e hoje vereador do Rio, César Maia, férreo crítico de Sérgio Cabral, avalia “institucionalmente” as prisões dos dois ex-governadores. Para Maia, “a ausência de oposição efetiva por vários anos criou a sensação de que tudo era possível. Leis tramitavam como decreto, não foi criado nenhum sistema de controle interno e os poderes executivo e legislativo atuavam como um só poder”. Maia também culpa a imprensa, os empresários e o Governo federal. “Existia a expectativa de que o Rio de Janeiro vivia um novo e longo ciclo expansivo e levou à imprensa a se associar ao projeto e não cumprir sua função de controle. Os empresários acreditaram nisso e também se associaram, e o Governo federal se tornou sócio desse otimismo e vitórias eleitorais financiaram a irresponsabilidade fiscal”.

Garotinho, acusado de usar um programa social para comprar votos no município fluminense Campos dos Goytacazes, onde governa sua mulher e ex-governadora Rosinha Garotinho, continua disparando contra Sérgio Cabral, ainda preso. O blog do político, condenado em 2010 por formação de quadrilha e aliado de Marcello Crivella na sua campanha vitoriosa pela Prefeitura carioca, rezava hoje assim em mais uma versão do sujo falando do mal lavado: “Cabral é preso por corrupção de 224 milhões, bem diferente de Garotinho, acusado por dar Cheque Cidadão aos mais humildes”.

O perfil da revista Piauí no qual Garotinho ironiza Cabral começa com uma cena que tinha algo de premonitório. Nela, Sergio Cabral, o atual governador, Luiz Fernando Pezão, e o presidente do Tribunal de Contas do Estado, Jonas Lopes Carvalho, recém absolvido pelo suposto recebimento ilícito em troca de votos para beneficiar uma empresa, ficaram presos num elevador. Carvalho suava silencioso porque sofria com claustrofobia, Pezão tentava forçar a porta com palavrões e Cabral testava seu jeitinho apertando o botão de um outro andar para ver se o aparelho subia. Três eternos minutos depois, o grupo foi finalmente resgatado pelos bombeiros, coletivo hoje em pé de guerra contra os severos ajustes fiscais promovidos pelo Governo, e Cabral, liberado e divertido, brincou: “Só faltava eu ficar preso, né?”.

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