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Uma salvadora de camponesas

Ex-freira ajuda mulheres no Ceará a sair da pobreza com agricultura e técnicas para lidar com a seca

Erbênia de Souza.
Erbênia de Souza.
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A menina de jeans tinha mais ou menos a sua idade, 17 anos. Um homem a agarrava na beira da estrada e a arrastava entre a mata da caatinga. Na manhã seguinte, a calça e a camiseta de cor clara estavam rasgadas, penduradas em um arbusto, como restos obscenos de uma refeição criminosa.

Naquela noite, Erbênia viu a jovem desaparecendo no matagal e correu para o vilarejo em busca de socorro. "É uma prostituta, o que você quer?", foi a reação, unânime, das pessoas. E aquela menina, totalmente desfigurada pelo pavor, cuja morte ela não conseguira evitar, visitou-a em pesadelos ao longo de muitos anos. Mas a decisão já tinha sido tomada: abandonar tudo –família, namorado, uma vida tranquila— para se tornar freira e ajudar as mulheres que sofrem, curando-se, ela própria, do trauma da impotência.

Erbênia de Souza tem 50 anos, mas parece não ter idade alguma. É uma pessoa de corpo miúdo, com um sorriso radiante, que usa roupas normais e não um hábito religioso, além de trazer um pequeno sol pendurado no pescoço. Vive no Nordeste brasileiro, em Crateús, uma cidade com 74.000 habitantes no coração da zona semiárida mais povoada do mundo, o sertão do qual se fala nos livros de João Guimarães Rosa, o Céline brasileiro. Aqui, a seca crônica causa prejuízos para os camponeses já afetados pelo monopólio dos latifundiários; e, quando chega a chuva, ela é violenta, superficial, incapaz de se acumular mais profundamente no solo, que é vocacionado para ser um deserto.

Crateús fica no Ceará, um dos Estados mais pobres do Brasil. Para a população local, os Jogos Olímpicos do Rio são como um universo a anos-luz de distância, assim como a crise política que culminou com a destituição da presidenta Dilma Rousseff, aprovada pelo Senado Federal em agosto passado. No Ceará, 18% da população vivem em situação de extrema pobreza, ante uma média nacional de 6%. Nas zonas rurais do interior, vive mais da metade dos habitantes mais pobres de todo o Brasil.

Antonieta, que cuida de uma horta com o apoio de Erbênia, em Crateús.
Antonieta, que cuida de uma horta com o apoio de Erbênia, em Crateús.

Filha desta terra rancorosa, Erbênia se tornou, à sua revela, um símbolo. Desde 2005, ela dirige a Cáritas local, uma associação ligada à diocese, embora o Vaticano já não reconheça a sua congregação religiosa, as Irmãs Missionárias de Jesus –algo semelhante ao que aconteceu, também no Brasil, com algumas organizações da Teologia da Libertação, consideradas excessivamente revolucionárias e comunistas. Mas Erbênia continua se sentindo uma irmã, vive em uma comunidade dedicada a ajudar os mais carentes. Mais do que como revolucionária, ela prefere ser definida como uma aventureira: apoia o Movimento dos Sem Terra nas ocupações de áreas improdutivas dos grandes latifundiários, assim como os acampamentos urbanos de movimentos que reivindicam moradia, como as 175 pessoas encurraladas na periferia de Crateús em um assentamento ilegal que leva o nome do padre Gérard Marie Fabert, um sacerdote francês que dedicou a sua vida aos mais pobres, também no Brasil. Elas ocuparam o terreno há quatro anos e cobram da Prefeitura que esta lhes forneça eletricidade, água e saneamento básico, já que não podem arcar com aluguel em outros lugares. Até o momento, porém, suas reivindicações permanecem atoladas na lama da burocracia.

Fica evidente que um temperamento como o de Erbênia, que não se dobra diante das ameaças dos políticos locais e dos latifundiários, não estava destinado a uma vida comum: "Veja só, o meu namorado na juventude volta a aparecer de vez em quando", confessa rindo, "e me pergunta: 'Ainda continua obcecada pelos pobres?". Ele continua esperando por ela, "mas agora eu sou mulher e mãe dessas pessoas".

Esta freira inconformada não demorou muito a perceber que, para evitar que as mulheres fossem vítimas da exploração e da violência, seria necessário primeiro conseguir fazer com que fossem realmente livres; acompanhá-las para fora da miséria e dos túneis sufocantes de uma sociedade machista, partindo justamente da "vocação pela terra" que impregna, aqui, cada projeto e cada esperança. "Construímos escolas para ensinar como fazer para as hortas serem produtivas, inclusive as menores, cultivando milho, mandioca e produtos locais como a castanha de caju, com bons frutos e outros alimentos. Estamos convencendo as pessoas de que a terra não é um lugar apenas de sofrimento e que elas não devem se sentir inferiores por serem trabalhadoras rurais. Ao contrário, a dedicação à terra deve ser motivo de orgulho".

A filosofia é a de Paulo Freire, educador brasileiro da classe trabalhadora. O apoio chega da ONG italiana WeWorld, que trabalha no Nordeste do Brasil com projetos de segurança alimentar. O método é a agricultura familiar biológica, oposta à intensiva e química dos latifundiários, que coloca o Brasil entre os primeiros países do mundo no uso de pesticidas e sementes modificadas geneticamente. As camponesas de Erbênia, no entanto, praticam o respeito à natureza e a si próprias, à espera da reforma agrária que nem mesmo o ex-presidente sindicalista Lula foi capaz de colocar em prática em seus felizes anos de proximidade aos mais pobres.

"Também somos contra o negócio da seca", acrescenta Erbênia. "Os fabricantes de tanques de água mantêm laços com políticos locais, que impõem tanques de plástico de 5.000 reais. Nós fabricamos tanques de cimento, mais ecológicos, a um terço do preço. E, assim, bloqueamos os que querem especular com os pobres. Por isso, chegam as ameaças".

A fome de verdade não é apenas uma lembrança da grande seca dos anos setenta e oitenta: naquela época, Erbênia viu uma família inteira ficar doente por comer uma vaca quase decomposta que haviam encontrado na rua, a única comida a que podiam aspirar. E ouviu uma criança pedindo a sua mãe que matasse e cozinhasse seu cachorro, porque as cólicas no estômago eram definitivas. "Assim morre a dignidade humana", reflete a freira, em torno da qual agora gravitam 55.000 pessoas que assistem aos seus cursos sobre amor a terra. Entre elas está Maria de Jesus, vigorosa aos seus 67 anos: com a venda dos frutos de sua horta, comprou novos campos e agora é proprietária de 28 hectares e ganha 2.000 reais por mês, mais que o dobro do salário mínimo, fixado pelo governo em 880 reais. Ainda mais surpreendente é o exemplo de Antonieta, 46 anos e três filhos, que admite: "Passávamos fome, literalmente". Ela nos leva a sua casa nos arredores de Crateús: cultiva alfaces e legumes, tem dois poços e cria porcos. "É uma autêntica empresária agrícola", afirma Erbênia, "e já não é mais escrava da pobreza".

São vitórias da tenacidade no Nordeste do Brasil, que não é precisamente uma região para mulheres, com seus elevadíssimos índices de violência de gênero (6,9 feminicídios a cada 100 mulheres, contra uma média nacional de 5,22) e de gravidez na adolescência. "Conseguimos reduzir em 60% a migração de camponeses ao litoral e a Fortaleza, capital do Ceará, onde terminavam nas favelas, entre o tráfico de drogas e a prostituição", explica Erbênia.

Erbênia de Sousa é uma das protagonistas do documentário Mothers, que o diretor italiano Fabio Lovino gravou em cinco países do mundo, em colaboração com a ONG WeWorld, para narrar várias situações de violação dos direitos da mulher.  A primeira projeção de Mothers no Brasil aconteceu em 9 de agosto, em Fortaleza, e, em 29 de setembro, o filme foi apresentado ao Parlamento italiano, em Roma. Essa reportagem faz parte da seção Planeta Futuro, em colaboração com a Bill & Melinda Gates Foundation.

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