Discussão de amor e ódio com a urna
Prezada urna eletrônica, sei que não és culpada, mas te reencontro neste domingo ainda ressabiado, com uma ressaca nada democrática
Prezada urna eletrônica, saudações, bom dia, sei que não és culpada, mas te reencontro neste domingo ainda ressabiado, com uma ressaca nada democrática, espero que compreendas o meu esperneio, sabes bem do que estou falando. Poxa, foi chato ver o meu voto virar pó naquela fatídica emboscada parlamentar iniciada pelo Eduardo Cunha e seus renegados bandoleiros, os mais rápidos do velho centro-oeste.
Sei que não tens culpa no cartório das conspirações e tampouco és calmante para os meus ressentimentos morais e cívicos. Ao te rever, porém, inevitável lembrar que a confiança em ti anda meio suspeitosa.
Sei, isso passa, é tanto que estou aqui de volta na cabine de papelão, boto fé na reconquista do nosso relacionamento, espero que o apitinho do “confirma” não fique na minha cabeça como a marcação sonora de um filme de terror. Óbvio que ainda não engoli as manobras do impeachment mandrake — golpe em qualquer dicionário de republiqueta —, mas, juro, vou relaxar um pouco, farei tudo para reatar o nosso namoro. Só precisamos de uma longa D.R., daquelas discussões lentas e arrastadas como um filme iraniano. Amor e democracia dão trabalho — quer moleza, vai para o Tinder, malandragem.
E olhe que não estou tratando, estimada urna, do simples desgosto de ver a minha vontade eleitoral frustrada contigo. É do jogo. Gozo para todos. Foi exatamente a não aceitação democrática da derrota que levou o Aécio Neves a desmerecer 54 milhões de votos e tocar fogo no circo. O resto da história a gente viu como foi, não gastarei tua santa paciência na véspera atarefada de mais um pleito.
Que seja feita a tua vontade. Te mando este recado porque não posso mais escrever umas malcriações nas velhas cédulas. Lembras? Os eleitores revoltados elegiam até os bichos em vez dos homens. Neste zoo anarquista, destacamos o Bode Cheiroso de Jaboatão dos Guararapes (PE), o rinoceronte Cacareco em São Paulo e o Macaco Tião no Rio de Janeiro.
Prezada e moderna urna, nos vemos neste domingo em Santa Cecília, na Pauliceia que um dia já foi desvairada. Vai ser lindo, apesar do meu ressentimento democrático. Depois de te tocar, com o carinho da primeira vez, continuarei essa D.R. imaginária no boteco do Fuad, ali na esquina da nossa zona eleitoral preferida. Quantas vezes cantei vitórias ou chorei derrotas de véspera desobedecendo a lei seca. Quantas vezes roguei praga em quem votava diferente.
Agora lamento apenas pelo desrespeito com o meu voto do ano 2014. Um voto aberto e declarado que me custou caro, eu diria um voto mais explícito do que o Marlon Brando e a Maria Schneider em “O último tango em Paris” (1972). Deixa quieto, passa a manteiga da legalidade e confirma. O bom é que vamos nos ver de novo neste domingo. Chega de ressentimento patriótico, sei que nada poderias fazer para manter aqueles milhões de votos válidos. A tramoia parlamentar era inegociável, uma pena.
Juro, urninha modernete, encerrarei por aqui a ladainha, que seja feita a tua vontade, embora no Pastoril do Velho Faceta eu sempre brinque com a turma do Cordão Encarnado.
Vai ser lindo te rever, apertarei com gosto, sem perder a delicadeza jamais. Como aquele sexo caliente depois da briga no relacionamento.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (editora Companhia das Letras), entre outros livros. Comentarista do programa “Papo de Segunda” (GNT).
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