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Coluna
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A fêmea do cupim e a fuga da realidade

Porque é importante e digno não suportar, por alguns momentos, a realidade mais pesada

Homem observa o morro da Urca, no Rio.
Homem observa o morro da Urca, no Rio.FERNANDO FRAZÃO (AgBr)
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Você sabe como se chama a fêmea do cupim? Revelo mais adiante. Sabe aqueles dias em que você foge da realidade, digo, do noticiário, ainda meio grogue da overdose que foram os últimos meses no Brasil? É o caso deste cronista alienado, mas só por hoje, prometo, como diz um alcoólatra diante dos desafios dos AA. Só por hoje.

É importante abstrair, nem que seja por umas horas, a realidade. Quem aguenta? Releio Madame Bovary, vejo videoteipe da série B do campeonato brasileiro, o futebol como bendito ópio do povo, miro no exemplo do Rubem Braga concentrado no seu pé de milho – em um momento que surge o primeiro pendão no quintal, que milagre mesmo em uma roça urbana, urbaníssima.

Observo o rito de chegada daquela mãe de maiô azul no posto cinco de Copacabana. A mãe e sua menina de uns seis, sete anos, baldinho, pá, castelo de areia... É inverno, mas é preciso conversar com Yemanjá, secretamente, como se fosse a hora do foguetório da virada de ano. Tudo, menos a realidade das manchetes com as mãos sujas ou com mãos limpas... Fugi até do caso da pobre onça Juma e do outro PC que apareceu morto no quarto do motel Tititi em Olinda.

Foi aí que lembrei da fêmea do cupim que surgiu em uma crônica de Manuel Bandeira datada, segundo o mestre Humberto Werneck, de 25/10/1961. Hoje é fácil saber, em um clique, como se chama a mulher do inseto que rói todas as madeiras – menos a madeira do Rosarinho, ouça no frevo do Capiba. Milhares de menções no Google sobre os mistérios do cupinzeiro. Felizmente, muitas lembrando a mesma e velha pergunta de Bandeira. Na época, nem o alagoano Aurélio, nosso homem-dicionário, sabia a resposta.

Porque é importante e digno não suportar, por alguns momentos, a realidade mais pesada. O Reino Unido deixou a União Europeia? Não faço ideia. É preciso reler Fup, o maior e mais genial pequeno livrinho do mundo. Tem uma pata gorda e um maluco que faz cercas e mais cercas o tempo inteiro. Urge sentar na esquina da Miguel Lemos com Ayres de Saldanha, ai de mim Copacabana, e testemunhar a marcha à ré dos caranguejos no tanque do bar “Príncipe de Mônaco”.

A linda e elegante madame arará, fêmea do cupim, agradece.

PC e as garotas da boate

– Acorda, mataram PC Farias.

Era uma manhã junina de kafkiana ressaca, há duas décadas. O telefonema da Folha, na voz da colega plantonista Andrea Fornes, me pôs rumo a Maceió, onde encontraria o corpo do tesoureiro da campanha do ex-presidente Fernando Collor na laje fria do IML. Nem o maior dos ingênuos acreditava na versão de crime passional. A tese unânime: queima de arquivo.

O homem que sabia demais, embora se mantivesse calado como um mafioso calabrês, era personagem íntimo de empreiteiros e de todo baronato tropical. A maior parte do PIB estava na sua caderneta de anotações. Não se fazia uma obra pública ou um grande negócio no país sem passar pelo fio do seu bigode ou pelo reflexo no espelho moral da careca do pivô do Collorgate.

Quem matou PC Farias? Uma interrogação que fez aniversário de 20 anos nesta semana. Tive uma longa relação de repórter e fonte com o capo alagoano. Nesta efeméride, que ocorre em um momento igualmente tumultuado pelos cupins da corrupção, lembro não o capítulo em que revelei o paradeiro do tesoureiro depois que fugiu do Brasil, em 1993 – estava escondido em Londres e, na sequência, escapou até Bancoc, onde o encontrei, com o repórter fotográfico Ormuzd Alves, nos porões da polícia de imigração.

O que recordo mesmo é o ambiente do Coquetel Drink´s, boate erótica próxima ao lugar do crime de Guaxuma, onde consegui, com as moças de fino trato, os maiores furos da minha fase de jornalista dito “sério” (risos).

Por que fazer plantão na porta da Polícia Federal se a chefia da PF comia na mão de PC? As meninas da boate, além de vizinhas, conviviam com os poderosos e amigos da chamada República das Alagoas. Sempre foram as melhores pauteiras do jornalismo. Elas acompanharam curiosamente o drama político e deixaram sua colaboração. O momento é de agradecê-las. Não de relembrar as páginas de glória (mais risos do cronista).

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), livro adaptado pelo diretor Claudio Assis, atualmente em cartaz nos cinemas.

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