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Coluna
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Paixão e drama de uma ‘pecadora’

O cronista relata o encontro com uma prostituta em uma Sexta-feira Santa, no tempo em que nada era permitido

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Deus castigava de forma severa e estava mais vivo do que nunca. Era uma sexta-feira da Paixão, de um mês de março como este, ano de 1979. Matuto em visita à capital do Recife, 16 anos e cinco meses, ficara praticamente sozinho no sótão da pensão da esquina das ruas das Ninfas e do Progresso, na Boa Vista. Saí a flanar pelas pontes sobre o Capibaribe e o Beberibe. Apenas alguns raros viventes, com a melancolia sulcada no rosto como marcas de xilogravura, apareciam e desapareciam nos becos do bairro de Santo Antônio. Entre eles, Quitéria, talvez a única prostituta da cidade que não havia se recolhido para celebrar a data cristã.

Guardava em mente todas as noções do pecado, mesmo assim arrisquei emparelhar o meu abandono com a tristeza borrada dos olhos da rapariga. Ela tentou me proteger dos castigos divinos. Advertiu sobre a possível e imperdoável falha. Estava ali, contou, porque se perdera e ninguém da família do interior a perdoaria jamais. Teria uns 20 anos, mais ou menos.

Mulher “perdida”, na definição mais antiquada, era a moça que “perdia” a virgindade e não casava imediatamente. O destino inevitável costumava ser a prostituição longe da sua aldeia de origem.

Nessa época, a Semana Santa impunha zelo e penitência. O jejum era obrigatório; e o desobediente que tomasse banho na Quarta-feira de Trevas ficava, realmente, entrevado... Carne, nem pensar, era coisa do anti-Cristo. Um tempo para refletir e fazer sacrifícios de acordo com os preceitos da Igreja Católica. Banhar-se, somente de lágrimas, nas sessões do filme O drama da Paixão ou na peça de teatro amador na praça pública. Não trato de representações modernas com técnica de distanciamento. Aqui o rapaz que fazia Jesus Cristo sempre levava uma sova de verdade.

Minha máxima culpa

Por insistência da minha parte, Quitéria me conduziu por aquelas escadas de madeira que rangia, degrau a degrau, todas as dores do mundo

Por insistência da minha parte, Quitéria me conduziu por aquelas escadas de madeira que rangia, degrau a degrau, todas as dores do mundo. Deitou-se na cama. Pediu, zangada em fala indecifrável, que eu agisse logo. O silêncio no Recife inteiro permitia ouvir a algazarra das ratazanas no sobrado.

Tentei um carinho, no que fui proibido.

“Ou avexa logo com essa besteiragem ou segue o teu prumo, vai-te embora, cão dos infernos”, disse, com ira.

Desci sobre a criatura. Ela virou o rosto. Não era permitido qualquer ensaio de afeto ou carícia. Na parede acima da cabeceira, um quadro encoberto com um pano branco manchado por nódoas de frutas. Ao mínimo balanço da cama de molas, caiu o pano. Aquele Cristo nos mirou, quem sabe com alguma piedade. Quitéria estava às lágrimas. Não aceitou o punhado de moedas. Nenhuma palavra foi pronunciada. Desci a escadaria com o peso da existência afundando meus calcanhares. Não consegui contar os passos na volta para casa. A cidade parecia habitada por fantasmas de Goya.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Tripa de cadela & outras fábulas bêbadas” (editora Dulcinéia Catadora, São Paulo), entre outros livros de contos e crônicas.

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