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O medo de se queixar da maternidade

Desabafo de mãe após o parto esquenta o debate nas redes sobre o tabu de reclamar

A cada novo viral sobre mães em que se aborda a face menos agradável dessa experiência, uma tendência se repete: uma avalanche de comentários, nas redes sociais, de mulheres que agradecem pelo fato de se falar do assunto publicamente e que se animam, ao relatar suas próprias experiências, a romper com aquilo que consideram um tabu no que se refere à idealização da maternidade. O depoimento a seguir, fotográfico e por escrito, é o último exemplo:

Esta é uma fotografia minha feita três dias depois de dar à luz. Estava convalescendo e tão exposta, que me sentia uma merda. Amava o meu bebê (sentia falta do seu pai (que nesse dia tinha voltado a trabalhar), sentia raiva de minha mãe, sofria de pensar no meu irmão, pois minha mãe nos tinha abandonado e agora eu tinha um filho que se parecia com ele, meus peitos estavam empedrados e sangravam, quase não dar leite, meu bebê estava com fome, eu me sentia triste de saber que há pessoas que matam crianças de propósito, não tinha dormido nada desde que começou o trabalho de parto, não sabia como lidar com os meus seios, minha vagina estava irritada de tanto me sentar para dar de mamar, estava quase ficando louca. Na manhã em que foi feita essa foto, Katie veio me dar comida. Teve até de passar em casa de novo na hora do almoço. Depois, uma das minhas sete irmãs, Sarah, veio à noite e trouxe o jantar para toda a família. Foi ela quem fez essa foto. Chegou com a comida e disse “Oi, como você está?”. Eu respondi: “Uma tragédia”. Conversamos, ela me ouviu e depois comentou: “Passei exatamente pela situação que você está agora”. Saber que ela também tinha ficado quase louca me ajudou! Depois disso, ela me disse: “Sei que isso pode parecer estranho, mas você tem uma máquina fotográfica? Está tão natural, e tão bonita”. Agradeço a ela por ter feito essa foto. Sua intenção inicial era apenas trazer comida para nós, mas ela acabou ficando muito mais tempo. Eu precisava dela. Ela sabia disso. Liguei para Rachel, pois precisava dela. Precisava que ela cuidasse do meu bebê, que precisava de ajuda para pegar o peito. Liguei para Shell. Precisava que ela me dissesse que o meu bebê estava bem. Queridas mães, isso é realmente o pós-parto. Algumas de vocês que já passaram por isso antes estariam dispostas a compartilhar como foi esse momento posterior ao parto? Eu tive um pós-parto esplendoroso. Não foi simples, mas recebi muito apoio e muitos conselhos, sempre lembrando que muitas mães antes de mim tinham passado por essa etapa da maternidade e que fazia sentido que eu passasse pelo mesmo.

A publicação desse post no perfil da protagonista, uma mãe de Phoenix (Arizona) teve 22.000 compartilhamentos e sua história apareceu como uma notícia viral nos veículos de comunicação do mundo inteiro. O artigo publicado no site bebesymás sobre essa foto foi compartilhado mais de 10.000 vezes no Facebook, recebendo mais de 7.000 comentários, segundo a ferramenta de medição Sharedcount.

Como as redes sociais têm muito de “vitrine”, a psicóloga e antropóloga Julieta París explica ao Verne que “uma foto como esta é um golpe que chama a atenção para a realidade que todos nós, numa espécie de pacto de silêncio global, procuramos abafar, silenciar e embelezar”. Nesse contexto, porém, há dois lados. “Compartilhar como você se sentiu ou se sente em uma determinada situação com pessoas que passaram pela mesma coisa é muito benéfico, pelo menos inicialmente. Embora, com o passar do tempo, isso possa atrapalhar a sua própria evolução”, destaca. Por outro lado, é inevitável fazer comparações, “e, por um desvio cognitivo, sempre tendemos a nos comparar para nos sentirmos pior, não para nos sentirmos melhor. Dessa forma, a tendência é sair em busca, no caso desse exemplo, de mulheres que se recuperaram muito bem e não daquelas que tiveram mais dificuldades...”.

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Para o pediatra Jesús Martínez, bastante ativo na internet –inicialmente com a página El médico de mi hijo no Facebook e agora com o blog Mamicenter--, há certa reserva na hora de se queixar da maternidade porque, para muitas mulheres, isso implica admitir uma sensação de fracasso “e ninguém sai por aí dizendo, olha, eu fracassei!”. Também pesar para isso, segundo ele, o” ímpeto de competir com outras mães” e a “ideia de ser uma mãe nota 10”. Ao comentar sua situação em foros ou redes sociais, “muitas mulheres procuram tão somente sentir que outras mulheres passam pela mesma situação que elas”, indo atrás, assim, dessa “sensação, que todos precisamos, de pertencer a uma ‘tribo’”, pois agora “você aprende tudo pela internet, mas muitas vezes não dispõe de mãe ou de irmãs que estejam por perto... E acaba lidando com uma coisa muito teórica e muito de cinema, que lhe faz mal”.

París também analisa esse aspecto da oposição entre expectativa e realidade: “Embora o conceito de ‘mãe boa x mãe ruim’ esteja se flexibilizando, ainda persiste, sobretudo nos primeiros dias do puerpério [os 40 dias posteriores ao nascimento], a sensação de que você não pode se queixar, de que não pode falar sobre o susto, sobre o medo, sobre os sentimentos misturados... e tão ambíguos. Perguntam: ‘É verdade que essa é a melhor coisa que aconteceu na sua vida’?... e o abismo entre o que você realmente sente e o que você acha que deve dizer, leva muitas mulheres a mergulharem em um poço de ansiedade que deveríamos saber enfrentar com mais naturalidade”.

Além disso, “a sociedade é muito dura com a recuperação pós-parto” e há uma “cobrança da sociedade, estimulada por algumas publicações em que se exaltam mulheres com um corpo muito distante daquele que entendemos como sendo um corpo pós-parto, magras, recompostas, de pele lisa e ágeis...”, comenta a psicóloga e antropóloga.

Apesar da persistência do tabu de se falar dos aspectos mais difíceis da maternidade, “há alguns anos já existem publicações, como o Club da Malas Madres, que começam a relativizar muito mais a situação”, assinala Martínez.

Mais de 10% das mulheres sofrem de depressão pós-parto. Consultar profissionais, aproveitando inclusive as visitas ao pediatra, é um dos caminhos para enfrentá-la.

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